Pesquisa do Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Caism) Unicamp mostra que, embora 69% dos médicos entrevistados, tenham relatado que nunca ou poucas vezes tomam atitudes que contrariam a sua religião, as atitudes práticas mostram o contrário.
As discussões em torno da descriminalização do aborto estão paradas desde o fim do ano passado e esbarram nas questões jurídicas. Um fator relevante e até agora pouco considerado é a religiosidade dos médicos como mostrou pesquisa apresentada no Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (Caism- Unicamp). Embora 69% dos médicos tenha relatado que nunca ou poucas vezes tomam atitudes que contrariam a sua religião, a pesquisadora identificou atitudes que mostram o contrário.
A legislação brasileira permite o aborto em caso de gravidez por estupro, porém menos da metade dos médicos (37%) disseram que fariam e quase 50% solicitariam que outro médico o fizesse. Para a pesquisadora Maria José Osis isso indica que mesmo amparado pela lei, o tema ainda traz desconforto aos profissionais e as concepções religiosas pessoais influenciam as decisões clínicas.
O aborto é permitido pelo Ministério da Saúde em caso de estupro ou risco de vida da mãe, mas isso não muda a percepção do ato como algo negativo que produza culpa, desconforto e estigma social para o médico. “Mesmo amparado pela lei, o profissional teme ser apontado como aborteiro”, diz a pesquisadora.
A conduta frente ao aborto também depende da proximidade do médico com o caso. Pelos questionários, 38% ajudariam uma mulher que solicitasse o aborto, e caso a mulher seja de sua família essa porcentagem aumenta para 42%. Quando perguntados sobre a sua própria vida, 21% das médicas e 33% dos médicos disseram já ter passado por gravidez indesejada e desses, 80% fizeram aborto. De acordo com Osis, a atitude dos médicos frente ao aborto depende mais de suas concepções religiosas pessoais do que de uma religião institucionalizada, já que apenas 32% puderam ser classificados como não religiosos.
A postura de mais de 3300 médicos de todo o país foi analisada por pesquisadores do Centro de Pesquisas em Saúde Reprodutiva de Campinas (Cemicamp). Eles receberam o questionário em casa, no início de 2005, junto com o jornal da Federação Brasileira de Sociedades de Ginecologia e Obstetrícia de Enquanto 67% se declarou católica, 9,1% eram espíritas, 3% evangélicos, 3% protestantes e 13,6% disseram que não tinham religião. A maior parte, 75%, tinha mais de dez anos de profissão e 63% participam de cerimônias religiosas. As pesquisadoras entrevistaram ainda 30 médicos de Campinas e São Paulo para a parte qualitativa da pesquisa e a maioria deles afirma que não gostaria de se envolver em situações de aborto, mas em caso de pessoas próximas, indicaria o misoprostol – remédio para úlcera, com efeito abortivo.
Mesmo em relação à indicação do uso do dispositivo intra-uterino (DIU) e da pílula do dia seguinte, ambos distribuídos na rede pública de saúde, alguns profissionais admitiram resistência na indicação destes métodos anticoncepcionais. Enquanto 7% dos ginecologistas consideram o DIU abortivo, sendo que 2% nunca o prescreveria, 22% dos profissionais acreditam que a pílula induz o aborto e, portanto, 7% não a indicaria. As combinações dessas respostas dos médicos que se disseram religiosos foram estatisticamente significativas, o que levou a pesquisadora a associar essa tomada de atitude ser devida às práticas religiosas.
Números fora da lei
O aborto induzido não é um direito assegurado pela constituição federal e há controvérsias, reações e resistências tanto da sociedade quanto dos profissionais de saúde. Para Maria José Osis, a educação médica deve discutir o tema de forma mais explícita, para que não se trate o tema com tanto desconforto. “Não há lei que mude as concepções religiosas. Mudanças na legislação que visam à legalização da prática estarão fadadas ao fracasso, se não há o respaldo dos profissionais da saúde”, finaliza.
As religiões cristãs consideram que a vida começa no momento da concepção, no encontro do óvulo com o espermatozóide, daí não apoiarem qualquer prática de interrupção da gravidez, mas sim métodos naturais de contracepção. Há inclusive, técnicas de psicologia que realizam abordagem direta ao inconsciente do indivíduo e trazem relatos de pacientes que vivenciam a experiência desse encontro de gametas.
Enquanto cientistas, religiosos e sistema jurídico não chegam a um consenso, o número de gestações indesejadas chega a 75 milhões por ano, segundo a Organização Mundial da Saúde. Dessas, de 30 a 50 milhões resultam em aborto induzido, nem sempre feito em condições adequadas e legais. No Brasil, o aborto inseguro é causa de 250 mil internações no Sistema Único de Saúde e em Salvador, é a primeira causa de morte materna, desde a década de 1990.