Solucionado embate científico de 56 anos. Cientistas da colaboração do Observatório Pierre Auger anunciam que os raios cósmicos são produzidos fora da Via Láctea, e sua fonte mais provável são galáxias vizinhas à nossa, que possuem buracos negros em seu centro.
Solucionado embate científico de 56 anos. Cientistas da colaboração do Observatório Pierre Auger anunciam amanhã, no periódico científico Science, que os raios cósmicos são produzidos fora da Via Láctea, e sua fonte mais provável são os chamados Núcleos Ativos de Galáxias, ou galáxias vizinhas a nossa que possuem buracos negros em seu centro. “A era da astronomia de raios cósmicos chegou. Nos próximos anos nossos dados permitirão identificar as fontes exatas destes raios cósmicos e como elas aceleram estas partículas”, comemorou o ganhador do prêmio Nobel James Cronin, da Universidade de Chicago e um dos idealizadores do Auger.
Descobertos no início do século passado, os raios cósmicos são partículas que viajam o universo e bombardeiam a Terra depois de chegarem de todas as direções do céu e colidirem com átomos presentes na atmosfera, em um processo sucessivo que gera novas partículas até perderem energia suficiente para continuarem as interações. A este fenômeno dá-se o nome de chuveiro atmosférico. O fluxo de raios cósmicos presente em nosso planeta pode ser muito intenso, no caso dos que possuem baixa energia, até se tornar muitíssimo baixo conforme as partículas são mais energéticas.
Nesta fase, os cientistas do Auger, maior observatório de raios cósmicos do mundo, analisaram as partículas de maior energia, tão raras que caem na Terra em uma frequência equivalente a uma partícula por metro quadrado por século. Sua energia chega a ser 100 milhões de vezes mais elevadas do que as de partículas produzidas pelos aceleradores mais poderosos do mundo. Quanto mais elevada for a energia da partícula menos interferência ela sofrerá com o campo magnético da nossa própria galáxia e, portanto, maior a probabilidade de que sua direção de chegada na Terra aponte para a fonte que a produziu.

A colaboração Auger analisou 81 partículas de energias superiores a 40 EeV (eletron volts) registradas entre janeiro de 2004 até 31 de agosto deste ano. Destas, apenas 27 com energia superior a 57 EeV atenderam a critérios relativos à significância estatística adotada pela colaboração Auger para estabelecer, sem ambigüidades, uma correlação com fontes. A detecção e reconstrução dos chuveiros atmosféricos são feitas de maneira mais precisa no Auger, porque o Observatório combina duas técnicas que eram antes aplicadas de maneira isolada: tanques detectores de partículas e telescópios que medem luz de fluorescência. Até agora estão instalados 1400 dos 1600 tanques projetados, separados por uma distância de 1,5 quilômetro em uma área total de 3 mil quilômetros quadrados, além de outros quatro “olhos de mosca”, estruturas compostas, cada qual, por 24 telescópios, todos localizados em Malargüe, na Argentina. Os dados indicaram uma forte correlação da trajetória dos raios cósmicos ultra-energéticos com as coordenadas de Núcleos Ativos de Galáxias (AGNs, na sigla em inglês), em uma clara distribuição que privilegia algumas direções no céu ou, no jargão técnico, anisotrópica, em contraposição a uma distribuição isotrópica, como se pensava. Os autores da descoberta, no entanto, são cautelosos ao afirmar que os AGNs são as fontes responsáveis por acelerar estas partículas misteriosas, apontando que talvez os AGNs sejam verdadeiros traçadores das fontes.
Desde 1950, a física de raios cósmicos se dividia em duas linhas para explicar a origem dessas partículas de energias elevadas que atingem a Terra em uma frequência rara. Enquanto os soviéticos defendiam nossa galáxia como sendo a fonte, os norte-americanos e ingleses diziam que a fonte era externa à Via Láctea. Uma das características marcantes da astronomia é estudar os objetos com o maior número de sondas, tais como luz visível, raio X, ondas de rádio. “Agora estamos oferecendo aos astrônomos uma outra sonda, qual seja, as partículas carregadas de altíssimas energias cujas informações devem complementar as informações utilizadas pelos astrônomos”, afirma Carlos Escobar, coordenador da parte brasileira do Auger.
Apesar da descoberta ser um importante passo na física de raios cósmicos, ainda falta, de acordo com Escobar, “refinar as técnicas de análise do Auger no sentido de melhorar a compreensão dos chuveiros e sua composição”. Ainda não é possível afirmar do que são formadas as partículas de energias elevadíssimas, mas os resultados do projeto apontam para um cenário compatível com a composição por prótons.

O Brasil é um dos 17 países dessa colaboração internacional e participa com 24 dos 370 cientistas. Aqui são cinco agências de fomento que investiram cerca de US$ 3 milhões na parte de instrumentação e software de simulação, reconstrução e análise dos chuveiros atmosféricos. Entre os equipamentos nacionais estão o projeto e execução de tanques Cerenkov de polietileno com 12 mil litros de capacidade, e componentes para os telescópios.
O Observatório Pierre Auger ocupa uma área suficiente para observar todo o céu do hemisfério Sul e muito pouco do hemisfério Norte (veja imagem). A equipe brasileira segue na expectativa da colaboração de que os resultados agora divulgados seduzam o governo norte-americano a concretizar os planos de construção de um observatório no hemisfério Norte. “Um sítio no Norte nos permitirá olhar mais galáxias e buracos negros, aumentando a sensibilidade de nosso observatório. Também existem mais AGNs próximos no céu do hemisfério Norte do que no hemisfério Sul”, afirmou Giorgio Matthiae, colaborador do projeto pela Universidade de Roma. O local escolhido fica no Colorado (EUA) em uma área três vezes maior do que a utilizada pelo seu irmão da Argentina. Serão cerca de 10.370 quilômetros quadrados, o que exigirá um investimento de aproximadamente US$ 100 milhões, ou pouco menos do dobro do custo do Auger do Sul.