Raça, racismo e genética: novos parâmetros, velhas práticas políticas?

Análises feitas sobre a ancestralidade do povo brasileiro, pelo geneticista Sérgio Pena, afirmam que do ponto de vista biológico, raça não existe. Entretanto, não há consenso de que as ciências biológicas possam trazer contribuições para um debate sobre a questão racial no Brasil, além da possibilidade de recolocarem o determinismo biológico em novos parâmetros: o genético.

Negar a existência de “raça”, no Brasil, não implica em dizer que racismo não existe. Essa afirmação ganhou destaque na mídia escrita e televisiva com apresentação das análises feitas sobre a ancestralidade do povo brasileiro pelo geneticista Sérgio Pena, professor titular de bioquímica da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e diretor do laboratório Gene – Núcleo de Genética Médica. Para ele, do ponto de vista biológico, raça não existe, ou seja, as categorias raciais humanas são construções sociais. Entretanto, não há consenso de que as ciências biológicas possam trazer contribuições para um debate amplo sobre a questão racial no Brasil, além da possibilidade de recolocarem o determinismo biológico em novos parâmetros: o genético. Pesquisadores argumentam que se a noção de raça pode ser pensada como uma construção social é porque raça e racismo existem, ou seja, o conceito de raça é usado no dia-a-dia para classificar socialmente as pessoas a partir da cor da pele, da textura do cabelo e do formato do nariz, por exemplo.

Utilizando ferramentas da genética molecular, Sérgio Pena e colaboradores, mapearam as linhagens paternas, pelo cromossomo sexual Y, e maternas, pelo DNA mitocondrial, de uma amostra de brasileiros autodenominados brancos de várias regiões do país. Nesse teste estimou-se as porcentagens de genes europeus, africanos e ameríndios (indígena) dos indivíduos. As estimativas são baseadas na análise de determinadas regiões do genoma escolhidas por revelarem traços que distinguem genes associados à cada região geográfica, representando uma média do código genético de uma pessoa.

Segundo Ana Maria Galdini Raimundo Oda, professora do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, as pesquisas mostraram que a maioria das linhagens paternas era européia (90%), enquanto a maior parte das maternas (60%), era ameríndia ou africana. Isto significa que muitas das pessoas que se consideram brancas de origem européia são, na verdade, mestiços.

Para a professora de História da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Adriana Pereira Campos, é importante a contribuição da genética para a discussão sobre raça, pois desmistifica não somente a posição racista, como também a racialista. “Afinal, defendemos ou não que raça não existe?”, questiona, e continua, “agradou-me muito saber que a cor da pele nada serve para definir a herança genética de alguém. Isso acaba com o mito da cor ou da raça”, enfatiza.

Velhas práticas políticas

Na opinião de Lúcia Xavier, coordenadora da Organização não Governamental Criola, afirmar que raça não existe é a mesma coisa que dizer que pobreza não existe. “Eu posso dizer que na favela, onde há uma casa com geladeira, televisão, ar condicionado e telefone, é uma casa de classe média. Na verdade, morar na favela, sem esgotamento sanitário, onde as pessoas têm baixa escolaridade e a maioria é negra, não serve como parâmetro para este novo argumento”. Ela questiona a genética ao definir os parâmetros para que determinado grupo social tenha direitos, lembrando que o racismo foi legitimado pela ciência durante a época da escravidão. A teoria científica do racismo ficou conhecida por afirmar que existiam raças inferiores não capazes do desenvolvimento intelectual. Tais raças estariam naturalmente destinadas ao trabalho manual, pois não conseguiam compreender as idéias complexas e avançadas. “Será ele de novo científico, quer dizer, a ciência vai prestar de novo esse papel? O que vale é a genética?”, questiona. Na opinião dela, os argumentos são novos, mas a ação política é antiga. “A genética não determina a prática política, que é feita nas relações sociais”, afirma.

Xavier, da Criola, ainda destaca que a questão colocada pela genética pouco contribui para a formação da consciência crítica da sociedade em um Estado democrático de direito. “As pessoas querem ainda ter a possibilidade de usar a metáfora do: ‘sabem com quem você está falando?’. Elas querem ser cidadãos através dos privilégios e não dos direitos, terem um tipo de conduta política que coloque para elas, o privilégio de poderem ter essas condições para seu próprio beneficio”. Nesse ponto a pesquisadora da Ufes, Adriana Campos, concorda com Xavier: “Tenho dúvidas que as pessoas estejam dispostas a abrir mão de posições consolidadas a respeito do conceito de raça, seja biológico, seja social, em favor de opiniões mais democráticas”.

Na opinião de Ana Maria Oda, pesquisadora da Unicamp, é pouco provável que a constatação do predomínio ameríndio e africano na ascendência materna dos “brancos” possa mudar a auto-imagem dos brasileiros e, ainda menos, evitar preconceitos e atitudes racistas. “Claro que esta é uma constatação empírica válida e que pode ser usada como argumento na defesa da igualdade humana, da mesma forma que se fez uso da defesa da teoria científica do monogenismo, isto é, a ancestralidade comum da espécie humana, hoje inquestionável, no passado. Mas não pode ser o argumento principal, pois a igualdade humana não se assenta em princípios biológicos, mas éticos, e nunca é demais repetir isso” conclui.

A questão da raça na mídia

Recentemente a mídia publicou diversas matérias sobre as pesquisas envolvendo resultados sobre a ancestralidade humana. A revista Veja, por exemplo, da Editora Abril (edição 2011), estampou em sua capa o caso dos irmãos Alan e Alex, de Brasília, gêmeos idênticos, classificados como sendo de raças diferentes pela Universidade de Brasília, quando concorriam ao sistema de cotas para negros nos cursos de graduação. “Um absurdo”, segundo a revista.

De acordo com Álvaro Pereira do Nascimento, professor do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), boa parte da grande imprensa tem procurado criar uma relação simplista entre raça e racismo, mas o quadro é mais complexo. “Se não há raças, então, como explicar o racismo?”, questiona o pesquisador. Aí vem o grande nó da questão. Segundo ele, são as construções sociais de raça que ajudam a determinar as relações sociais . “O resultado do racismo pode ser visto na cor predominante entre os funcionários dos melhores cargos das empresas. Vejo poucas matérias mostrando brancos famosos que têm um antepassado africano, pois preferem o indígena”, explica Nascimento.

A pesquisadora da Unicamp espera que estes conhecimentos científicos sejam apropriados pela sociedade de forma crítica, ou seja, devem circular como é a característica de uma democracia. “De forma geral, é preciso ter consciência não só das fascinantes possibilidades oferecidas pelos estudos da genética, mas também de suas limitações, dos significados específicos de seus achados, evitando-se reducionismos e usos indevidos destes resultados nos debates sobre questões sociais”, conclui Oda.

Veja outras matérias

Nova genética desestabiliza idéia de “raça” e coloca dilemas políticos

Razões para banir o conceito de raça da medicina brasileira

Convite à Filosofia capitulo 5 do livro de Marilena Chauí que discute o racismo científico