Pesquisa aponta racismo mascarado no sistema jurídico brasileiro

Questões raciais ainda são pouco debatidas no setor jurídico, deixando manifestações racistas impunes no Brasil. Pesquisa realizada na Universidade Federal do Pernambuco revela que existe uma hegemonia branca no sistema jurídico nacional que reproduz práticas e valores que mantém a hierarquia racial da época da escravidão.

O site da agência de notícias Afropress está fora do ar. O motivo? Ataques de crackers racistas que interferem na conexão da agência criada para dar visibilidade às questões raciais. Desde a sua criação em 2004, a agência possui colaboradores voluntários de todo o Brasil que colocam em pauta temas raciais na mídia. Esse tipo de manifestação racista continua impune no Brasil e o tema é pouco debatido no setor jurídico. Pesquisa realizada na Universidade Federal do Pernambuco revela que existe uma hegemonia branca no sistema jurídico nacional que reproduz práticas e valores que mantém a hierarquia racial da época da escravidão.

De acordo com o historiador e autor da tese de doutorado, Ronaldo Sales, existem padrões de decisão nos processos judiciais que facilitam a incriminação e punição quando os réus são negros. Ao mesmo tempo, existe maior impunidade para réus brancos e nos casos de discriminação racial a tendência é a não-punição.

O pesquisador quantificou o número de ocorrências de discriminação racial registradas nas delegacias da região metropolitana no Recife e encontrou que, nos últimos sete anos, dos 160 casos de racismo registrados nas delegacias, apenas 3% foram julgados por esse mérito. Mais de 80% sequer se transformaram em inquérito policial. “A dor da vítima é tida como algo subjetivo, que exclui, marca e segrega, mas os casos são classificados como de baixo potencial ofensivo, e num sistema de justiça moroso, penoso e caro, muitas vítimas acabam abrindo mão do processo”, explica.

Segundo Sales, no Brasil, homicídios e torturas com vítimas negras não são tratados como racismo e há o “fetichismo lingüístico” onde se não há expressão verbal, a lei não caracteriza a intenção de ser racista. O racismo é encarado então como problema de expressão verbal ou um simples mal-entendido entre alguém que ofende e alguém que se ofende. A maior parte dos casos de discriminação racial é tida como injúria qualificada, pois a única forma de saber se um caso é discriminação racial ou não é pela expressão verbal utilizada. “Por isso as denúncias são mais enquadradas no tipo penal da injúria qualificada, não do crime de racismo”, explica o pesquisador.

Racista, eu?

De acordo com o advogado e presidente da ONG paulista ABC Sem Racismo, Dojival Vieira, jornalista e responsável pela agência de notícias Afropress, é preciso acabar com a hipocrisia que ignora o passado brasileiro de 350 anos de escravidão e que ainda conserva uma sociedade onde a raça ainda é um fator prevalente. “Existe no Brasil um racismo invisível, pois as pessoas não o assumem”, diz. Em pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo, em 2003, 87 % dos brasileiros consideram que o país é racista, mas só 4% se assumem racistas.

O Estado brasileiro, nos últimos anos, começou a reconhecer a discriminação racial contra negros, indígenas entre outros grupos sociais e a tomar medidas emergenciais para minimizar o problema. Na gestão do presidente Fernando Henrique Cardoso houve uma política para a formação de diplomatas negros pelo Instituto Rio Branco. Já o atual presidente da República instituiu a lei 10.639/03 que possibilita o ensino de História da África e cultura afro-brasileira na educação básica (ensinos fundamental e médio) e o Sistema Especial de Reserva de Vagas para estudantes negros e indígenas egressos de escolas públicas, nas universidades federais, ainda sem adesão por parte de todas as instituições de ensino e não aprovado (leia notícia sobre questão das cotas). Mas ainda faltam políticas públicas para a superação do racismo, afirma Vieira.

Para o historiador e professor da Universidade Federal Fluminense Arthur Soffiati, o racismo está presente em todas as sociedades e está tão impregnado na sociedade brasileira que certas expressões racistas acabam sendo tomadas como naturais. Entre elas a famosa “negro de alma branca”, ou em outro caso, o “serviço de preto”, que desmascaram o racismo. Para o pesquisador, é preciso educar e não radicalizar demais, para não considerar tudo como intenção ofensiva.

O Brasil recebeu mais de quatro milhões de escravos enquanto colônia de Portugal, e foi o último país do mundo a abolir a escravidão. Porém, só 5,9% da população nacional se declara de cor preta enquanto 42, 1% se consideram pardos, de acordo com os indicadores sociais do IBGE, para o ano de 2005. Juntando-se esses dois grupos étnicos, o país concentra a maioria da população afro-descendente fora do continente africano.

Legislação

A legislação não estabelece uma distinção clara entre racismo e preconceito. A procuradora federal da advocacia geral da união Marizete Nascimento afirma que enquanto o preconceito é uma definição geral para atitudes sem conhecimento prévio da pessoa ou assunto em questão, o racismo seria específico para essas atitudes por motivo de raça.

Já a constituição, através da Lei Caó, afirma que racismo é crime inafiançável, mas não o define. Essa lei é regulamentada no Código Penal por outra lei (7.716), que detalha os possíveis crimes de preconceito e suas punições e trata a ofensa verbal com o mesmo rigor que outros crimes.

O racismo não ocorre apenas contra os negros e já existem no país condenações contra atitudes e manifestações anti-semitas ou indígenas. No país existe uma delegacia de crimes raciais em São Paulo, que não disponibilizou estatísticas desse tipo de crime no Brasil.