INPA pesquisa alternativa para resíduo de peixe jogado nos rios

O que acontece com o resíduo do peixe não utilizado pela indústria alimentícia? Pesquisadores do INPA estão voltados para esta questão em busca de alternativas menos poluentes, e produziram uma pesquisa pioneira na utilização de corantes vegetais da Amazônia para o tingimento do couro do peixe matrinxã.

O que acontece com o resíduo do peixe não utilizado na indústria alimentícia? Na época da safra, no Amazonas, estima-se que em torno de três toneladas de pele de peixe são jogadas nos rios por dia. Embora seja um material degradável, quando lançado em enorme quantidade, causa danos ao meio ambiente e desequilibra o ecossistema. Pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) estão voltados para esta questão em busca de alternativas.

A engenheira de pesca Karina de Melo desenvolveu uma pesquisa pioneira na utilização de corantes vegetais da Amazônia para o tingimento do couro do peixe matrinxã, sob orientação de Jerusa de Souza Andrade e Rogério Souza de Jesus, ambos pesquisadores do INPA. A novidade da pesquisa é a utilização de um processo vegetal para tingir o couro do peixe, em lugar dos processos minerais e sintéticos já conhecidos. Com esse novo processo, menos produtos poluentes são jogados no meio ambiente. “O tingimento com corantes vegetais, como por exemplo o urucum, é um processo antigo, que os egípcios e os índios já usavam; daí a idéia de implementar dentro de um curtimento um corante vegetal, natural, que prejudicasse menos o meio ambiente”, diz Melo.

Apesar disso, o procedimento de pesquisa foi realizado em laboratório e não contou com a participação das comunidades locais. Dentre as amostras de plantas que a pesquisadora selecionou, foram escolhidas as que tinham maior concentração de corante, e que fossem mais solúveis em água, resultando no cacauí, de cor azulada/violeta, e no crajiru, de coloração avermelhada.

Experimentos com três tonalidades de couro tingido: 5, 10 e 15% de corante utilizado – crajiru (esq) e cacauí (dir).
Foto: Natacha Veruska

Melo acrescenta que o objetivo da pesquisa foi utilizar uma matéria-prima não comestível. “Os corantes vegetais que existiam – diz ela – eram os utilizados em alimentos, como o urucum e o açafrão. Na literatura pesquisada não há nenhum tipo de corante que não seja comestível; minha idéia era justamente gerar um corante que também fosse resíduo, ou seja, não-comestível”.

A pesquisa realizada por Melo faz parte de uma série de pesquisas do INPA que estão relacionadas. Anteriormente, a engenheira já havia desenvolvido um estudo sobre a transformação de peles de peixes amazônicos em couro. Na ocasião, realizou o curtimento do peixe matrinxã, orientada por Rogério Souza de Jesus e José Jorge Rebello.

Rebello, técnico em Curtimento do INPA, desenvolvia por sua vez um trabalho com o resíduo do peixe jogado nos rios do Amazonas oriundo tanto de indústrias, como do próprio local de desembarque do peixe, onde há alguns pontos de comercialização e nos quais já retiram a pele do peixe. “No caso da indústria, existe um maior aproveitamento do resíduo do peixe: a cabeça pode virar resíduo para a pesca marinha e, as vísceras, sabão ou ração para peixe”, explica Jesus, que acrescenta a diferença no caso da comercialização realizada pelos chamados “peixeiros” de Manaus. “Eles fazem a limpeza do peixe no local do desembarque e todo o resíduo, como pele, cabeça, escamas, gordura, vísceras é jogado no rio, gerando grande uma poluição no local. A pesquisa de Rebello trabalhou inicialmente com o que é chamado de “pele de peixe liso” e, mais recentemente, com os pescados oriundos da piscicultura, como o matrinxã e o tambaqui. A pesquisa do tingimento do couro de peixe faz parte deste projeto e dá continuidade ao trabalho realizado para o curtimento do matrinxã.

Melo aponta que o couro do matrinxã não é tão resistente como o couro “de peixe liso”, mas, por ser mais macio, pode ser usado para fazer bolsas, pulseiras de relógio, acessórios e vestimentas. Já os corantes extraídos do cacauí e do crajiru podem ser utilizados também na indústria têxtil. Na São Paulo Fashion Week e na Fashion Rio da primavera/verão 2008, além dos tecidos tecnológicos, que têm propriedades como proteção contra os raios ultravioletas, ou absorção de suor, também ganharam destaque esse ano os tecidos ecológicos como o algodão orgânico, o couro vegetal, a fibra de juta, a palha, o reciclável poliéster japonês e ainda as cuecas chamadas “ecológicas”, produzidas com fibras de bambu em substituição à fibra sintética. Os eventos apontam uma nova tendência de mercado na qual o couro do matrinxã poderia ser incluído.

O processo desenvolvido por Karina está sendo protegido, de acordo com Rogério Souza de Jesus, pela Divisão de Propriedade Intelectual de Negócios do INPA e até que os interessados em desenvolver industrialmente esse tingimento entrem em contato com o instituto, a pesquisa fica guardada. Jesus explica que a pesquisa de Karina mostrou que existe a potencialidade da utilização de corantes naturais para o tingimento de couro de matrinxã; a partir daí, quando uma empresa tiver interesse, deverá trabalhar com a pesquisadora para chegarem a um produto direcionado ao nicho de mercado que a empresa quer atingir e que possa ser comercializado.

A pesquisa de Melo foi apresentada como dissertação de Mestrado no INPA em maio de 2007 e financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM).

Arqueologia recupera história de povos indígenas no nordeste de São Paulo

A historiadora e arqueóloga Camila Azevedo de Moraes, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (USP), analisou 6.500 peças de cerâmicas Tupi Guarani com a idéia de rastrear todo o material dos grupos que habitaram o nordeste de São Paulo e reconstruir parte de sua história. As peças estudadas incluem as que já estavam em museus e coleções particulares nas cidades da região, e também as coletadas em escavações realizadas pela própria pesquisadora.

A região do médio e alto vale do rio Mogi Guaçu, localizada a cerca de 200 km da capital paulista, guarda um verdadeiro tesouro arqueológico que pode resgatar a história dos povos indígenas que ali habitaram. A historiadora e arqueóloga Camila Azevedo de Moraes, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (USP), analisou 6.500 peças de cerâmicas Tupi Guarani com a idéia de rastrear todo o material dos grupos que habitaram o nordeste de São Paulo e reconstruir parte de sua história. As peças estudadas incluem as que já estavam em museus e coleções particulares nas cidades da região, e também as coletadas em escavações realizadas pela própria pesquisadora.

Exterminados por doenças e guerras, sem registros de migrações e sem relatos escritos sobre seus costumes, os grupos Tupi que ocuparam essa porção do território paulista seriam esquecidos pela história se não tivessem deixado parte de sua cultura intacta: fragmentos de artefatos de cerâmica e outras peças que podem ajudar a recontar como foi sua vida na região. “Existem relatos dos séculos XVI e XVII que falam dos grupos Tupi que viviam no litoral e na atual cidade de São Paulo, mas infelizmente temos poucos relatos escritos que falem a respeito dos grupos Tupi do nordeste de São Paulo. Nesse caso, essa história será contada apenas pela arqueologia”, explica a pesquisadora.

A região pesquisada no vale do rio Mogi Guaçu compreende especialmente as cidades de Mogi Guaçu, Pirassununga e São Simão, onde foram encontrados a maioria dos sítios arqueológicos. A área é tida como uma fronteira entre grupos diversos: os Guarani, que habitavam ao sul, os Tupiniquim e os Tupinambá, que ficavam mais ao leste. Apesar de pertencerem ao mesmo tronco lingüístico (Tupi), esses povos possuíam uma identidade cultural própria e costumes particulares. Estima-se que os grupos Tupi ocuparam a área durante pelo menos 500 anos (de 1000 a 500 anos atrás), ao longo dos quais as mudanças culturais e a interação com outros grupos que não eram Tupi resultaram em transformações de sua cultura artefatual, ou seja, na mudança do material, da decoração e do modo de fazer os artefatos. “Por outro lado, a continuidade de alguns traços permitiram a associação desse material com a tradição arqueológica Tupi Guarani”, afirma Moraes.

Grande parte do material estudado é formada por fragmentos de vasilhas de cerâmicas, associadas ao armazenamento, produção e consumo de alimentos e bebidas, além de algumas urnas funerárias. De modo geral, a cerâmica Tupi Guarani se caracterizava por grandes vasilhas e tigelas com decorações pintadas ou decorações tecnicamente chamadas de plásticas – feitas com os dedos, quando a argila ainda pode ser moldada, antes de ser queimada.

A análise dessas peças permitiu fazer um rastreamento do comportamento desses povos. Foi possível constatar, por exemplo, que três diferentes sítios apresentavam peças e características de ocupação bastante semelhantes, revelando o provável deslocamento de um mesmo grupo indígena dentro de seu território. Também foi possível analisar que o único sítio associado à bacia do Rio Pardo – ocupado há cerca de 1000 anos atrás -, apresenta similaridade com alguns sítios do Alto Mogi de datações bem mais recentes – aproximadamente 600 anos atrás -, revelando uma continuidade cultural e uma permanência considerável desses grupos no vale desses rios. Além disso, algumas das peças analisadas deixam transparecer os processos de contato entre os indígenas e os portugueses: alguns artefatos, apesar de conservarem a técnica indígena na produção, trazem na forma ou na decoração a influência européia. Essas peças não são quantitativamente expressivas, mas mostram redes de contato antes mesmo da colonização da região, as quais só puderam ser abordadas a partir da arqueologia.

A região está se revelando um campo de trabalho promissor para arqueólogos, historiadores, antropólogos e outros estudiosos da cultura indígena, com bastante material ainda a ser estudado que pode preencher lacunas na história dos povos indígenas brasileiros. O estudo deste território, no nordeste de São Paulo, além de aprofundar o conhecimento de seus sítios arqueológicos e da cultura e os costumes dos povos que ali habitaram, também contribui para a conservação desse patrimônio cultural brasileiro.

Na antropologia, clima e cultura não estão dissociados

As previsões catastróficas que se formaram em torno da chamada crise ambiental utilizam-se de padrões científicos para definir a “verdade” sobre o clima. Para antropóloga Priscila Faulhaber, do Museu Goeldi, tais verdades são baseadas em formas convencionais de ver o meio ambiente e também as mudanças climáticas. Seu estudo privilegia os saberes indígenas, fora da oposição entre clima e cultura.

As previsões catastróficas que se formaram em torno da chamada crise ambiental, utilizam-se de padrões científicos para afirmar que, se o modelo atual de consumo dos recursos naturais não forem modificados, o planeta sofrerá alterações climáticas que prejudicarão as formas de vida existentes na Terra. Porém, há outros enfoques, diferentes desses, que trazem à tona como os saberes tradicionais transmitidos de geração a geração por narrativas orais orientam a relação entre clima e cultura. A pesquisa desenvolvida no Museu Paraense Emílio Goeldi, “Fronteira, identidade e transformações ambientais: análise do ritual de fertilidade Ticuna”, coordenada pela antropóloga Priscila Faulhaber, mostra que é possível pensar numa forma alternativa de relação clima-cultura, fora da oposição entre ciências e culturas.

As alterações climáticas são objeto de estudo da climatologia, um ramo da geografia. Mas também podem ser estudadas pela antropologia, através de um campo de estudo que se chama antropologia do clima, ou seja, a análise da relação entre os fatores climáticos e as culturas humanas. A pesquisa de Faulhaber se propõe a analisar como as alterações climáticas influenciam no comportamento e os rituais religiosos no imaginário e a narrativa dos povos indígenas Ticuna. Segundo explica a antropóloga, “o foco é o ritual de puberdade feminina Ticuna, dentro da antropologia política e simbólica, com base em pesquisa de campo e no exame dos artefatos rituais Ticuna da Coleção Nimuendaju do Museu Goeldi”.

artigo “As estrelas eram terrenas: antropologia do clima, da iconografia e das constelações Ticuna”, foi um dos resultados do projeto com os artefatos Ticuna da coleção Nimuendaju do Museu Goeldi, no qual a pesquisadora realizou pesquisa de campo com os índos Ticuna do Brasil e da Colômbia, em diversas viagens de 1997 a 2002. O inventário dos artefatos rituais foi disponibilizado no CD-Rom “Magüta Arü Inü. Jogo de Memória”, premiado pelo IPHAN em 2003. Atualmente a pesquisadora está cedida ao Museu de Astronomia MCT e vem desenvolvendo estudos no sentido de correlacionar os resultados de sua pesquisa de campo com informações levantadas em arquivos, bibliotecas e centros de ciência no Rio de Janeiro, em uma interface com pesquisas de etnoastronomia, estabelecendo análise de âmbito antropológico, integrando-as em atividades interdisciplinares.

Segundo Faulhaber a racionalidade das operações e métodos científicos que são considerados universais, do ponto de vista de disciplinas específicas, sempre pode ser relativizada. Certas denominações astronômicas convencionadas como universais foram concebidos por povos particulares como fenícios, egípcios, etc. “Julgo que o que se entende como científico diz respeito a concepções específicas de cosmologia, que podem ser comparadas com cosmologias de povos particulares. O próprio Big Bang, normalmente aceito como princípio explicativo de um ‘começo’ para a história do universo, também pode ser entendido como um ‘mito de origem’ e, enquanto tal, comparável com mitos de origem de povos específicos”, explica.

Os relatórios científicos do IPCC, que divulgaram através de documentos científicos “a verdade” sobre os impactos das transformações do clima, são um exemplo. Para Faulhaber, tais verdades são baseadas em formas convencionais de ver o meio ambiente e também as mudanças climáticas. Porém, ela chama a atenção que do ponto de vista antropológico, as convenções podem sempre ser remetidas a princípios estabelecidos com base em consensos, que, “enquanto tais podem ser vistos como arbitrários, uma vez que existe um grande grau de dissenso entre diferentes percepções das chamadas mudanças climáticas globais”, afirma.

Na definição atual de ciência, para que um conhecimento possa ser considerado científico é necessário traçar as operações que possibilitam a verificação de um dado fenômeno, ou seja, determinar claramente o método usado para se chegar a esse conhecimento. A pesquisa de Faulhaber traz à tona uma outra forma de percepção e apresenta outras possibilidades de interpretação sobre o clima. A pesquisadora do Museu Goeldi, analisa a religiosidade climática, ou seja, as manifestações religiosas de determinado povo, relacionadas à percepção de fenômenos climáticos ou ambientais, presente nos rituais dos povos indígenas da tribo Ticuna.

Faulhaber, explica, em seu artigo, que a relação com a natureza e as mudanças ambientais para os Ticuna passa pela interação com as forças e os seres desconhecidos e pela mediação de especialistas nativos, como os xamãs (ou, para os índios brasileiros, pajés), responsáveis pelo controle das técnicas e saberes adquiridos de geração a geração que configuram sistemas de pensamento, visão e reflexão do mundo.