Direitos sexuais em descompasso com direitos reprodutivos

O descompasso entre o reconhecimento jurídico dos direitos sexuais em relação ao reconhecimento dos direitos reprodutivos e os 25 anos de institucionalização do campo de estudos da saúde reprodutiva e sexualidade no Brasil foram os temas apresentados em evento do NEPO.

Existe um descompasso entre o reconhecimento jurídico dos direitos sexuais e o reconhecimento dos direitos reprodutivos. Esta é a conclusão de Laura Davis Mattar, ganhadora do prêmio NEPO 25 anos, no artigo Desafios e Importância do Reconhecimento Jurídico dos Direitos Sexuais Frente aos Direitos Reprodutivos. Os direitos de decidir de forma livre e com responsabilidade sobre a reprodução e de ter acesso a informações e meios para tomada de decisões dizem respeito aos direitos reprodutivos. Por sua vez, o direito de exercer, sem discriminação ou coerção, a sexualidade e a reprodução, diz respeito aos direitos sexuais.

O fato dos direitos reprodutivos serem hoje mais reconhecidos do que os direitos sexuais tem a ver, de acordo com Mattar, com a confusão conceitual que envolve esses conceitos. Existem razões históricas, da moral e do direito que explicam este descompasso. Isso pode ser observado na produção científica (do ponto de vista médico) sobre o masculino e o feminino, a qual torna mais evidente a dificuldade de separar a prática do sexo da finalidade da reprodução e de alterar os modelos de gênero que temos. Tais modelos, em sua opinião, abrigam perversas estruturas de poder. É a partir desse olhar que a evolução das teorias a respeito da sexualidade e o entendimento sobre os corpos ficam mais claros.

Os obstáculos impostos pela moral aos direitos sexuais valem também para os direitos reprodutivos. A sexualidade para a igreja católica deve ser exercida com a finalidade da procriação, dentro das relações conjugais, e qualquer forma de contracepção ou aborto são imorais. Os padrões de família descritos no Código Canônico, explica Mattar, continuam a ser os padrões da família cristã católica e isso se reflete na sociedade, onde as mulheres são vistas sob o prisma de sua capacidade reprodutiva e materna. As posições da igreja acabam sendo um entrave para o reconhecimento jurídico dos direitos sexuais e reprodutivos, pois visam assegurar uma moralidade sexual e a segurança da instituição familiar.

No âmbito do direito, a tradicional distinção entre a esfera pública e a privada afetou o reconhecimento jurídico dos direitos sexuais em relação aos direitos reprodutivos, já que reprodução foi conectada com o direito à saúde, mas a mesma vinculação com relação aos direitos sexuais só ocorreu num momento posterior. Ainda de acordo com a pesquisadora, nessa arena de debates, enquanto o exercício pleno da diversidade sexual confronta-se com as barreiras impostas pelo Vaticano, que utiliza seu status e recursos disponíveis, o movimento feminista utiliza como estratégia a vinculação dos direitos sexuais ao direito à saúde.

Mattar explica que esses direitos devem ser vistos de forma inter-relacionada, já que o exercício da sexualidade livre e segura só é possível se a prática sexual estiver desvinculada da reprodução, mas por outro lado devem ser tratados juridicamente de forma diferenciada, pois isso assegura uma cidadania plena tanto para as mulheres, como para os homossexuais. “O fortalecimento da cidadania acontece quando direitos são reconhecidos, o que pode resultar na formulação de políticas públicas que os garantam”, conclui Mattar.

Estela Maria Aquino, do Programa em Gênero e Saúde da Universidade Federal da Bahia (UFBA) sinalizou durante o evento a importância da vinculação entre sexualidade e saúde como algo que faz parte da evolução desse campo de pesquisas.

Ao mapeá-lo Aquino mostrou os diferentes momentos pelos quais passaram os estudos em saúde coletiva: até a década de 70, a produção científica na área de saúde definia a mulher por sua capacidade reprodutiva e ela era vista mais como um instrumento para se alcançar a melhor saúde das crianças; nesse momento, a biomedicina exercia uma grande influência e o viés moral delineava as pesquisas científicas de forma mais veemente. Já nos anos 80, a saúde é integrada ao movimento de mulheres como uma prioridade e nos anos 90 ocorre uma mudança mais efetiva, principalmente na área acadêmica, por influência das conferências internacionais. Nesta época são criados grupos de pesquisa que fortalecem a institucionalização do campo.

O pesquisador do Nepo, José Marcos Pinto da Cunha, apontou que a relação da demografia com estudos de saúde reprodutiva e sexualidade ainda pode crescer e propôs aos pesquisadores ali presentes que ajudem a fortalecer os estudos demográficos nessa área.

A entrega do prêmio foi feita pelo Secretário de Estado da Saúde de São Paulo, Luiz Roberto Barradas Barata, durante o Seminário Saúde Reprodutiva e Sexualidade no Brasil: trajetórias e perspectivas. Margareth Arilha, Greice Menezes e Estela Maria Aquino receberam os prêmios de menção honrosa.

Homenagem a Elza Berquó

No Seminário – que fez parte do Ciclo Comemorativo de Debates dos 25 anos do Núcleo de Estudos de População (NEPO) -, um painel sobre os 25 anos da trajetória da saúde reprodutiva e sexualidade no Brasil e as perspectivas para o futuro mostrou que essa trajetória está fortemente vinculada às ações da fundadora do núcleo, Elza Berquó.

Da esq p dir: Elza Berquó, Luiz Roberto Barradas Barata, Edgar Salvadori De Decca, Rosana Baeninger e Suzane Jacob Serruya
Foto: Daniela Lot

 

No Brasil, na época em que existiam poucas instituições sobre demografia, Berquó atuou eliminando valores obsoletos que mantinham desigualdades e preconceitos. Essa é a opinião de Axel Mundigo, do Center for Health and Social Policy dos Estados Unidos, presente no evento.

Cordão umbilical não deve ser descartado, diz estudo da USP

Atualmente, os bancos de cordão umbilical armazenam apenas o sangue do cordão umbilical, enquanto o próprio tecido do cordão é descartado. Um estudo realizado pelo Centro de Estudos do Genoma Humano da USP, publicado em outubro pela revista Stem Cells, mostrou que esse tecido jogado fora é rico em um tipo especial de células-tronco, chamadas mesenquimais.

Atualmente, os bancos de cordão umbilical armazenam apenas o sangue do cordão umbilical, enquanto o próprio tecido do cordão é descartado. Um estudo realizado pelo Centro de Estudos do Genoma Humano da USP, publicado em outubro pela revista Stem Cells, mostrou que esse tecido jogado fora é rico em um tipo especial de células-tronco, chamadas mesenquimais. Os pesquisadores compararam amostras de sangue do cordão umbilical com o tecido do próprio cordão, obtidos dos mesmos doadores, e avaliaram a presença de células-tronco mesenquimais, que são capazes de se diferenciar em vários tipos de células, como as precursoras de cartilagem, ossos, gordura, músculos e neurônios.

Embora células-tronco mesenquimais tenham sido isoladas de apenas uma dentre as 10 amostras de sangue analisadas, foi possível cultivar esse tipo celular a partir de todas as amostras de tecido do cordão umbilical. Baseados nesses resultados, os pesquisadores sugerem que se estoque também o próprio cordão umbilical além do sangue contido nele, para aplicações terapêuticas e científicas futuras. “As células-tronco mesenquimais poderiam ser utilizadas no caso de fraturas ósseas, reparo de cartilagem, reconstituição de um dente, ou doenças musculares, tais como distrofias”, afirma Mariane Secco, principal autora do artigo.

Essas células-tronco podem ser obtidas a partir de outros tecidos, como a medula óssea, tecido adiposo, polpa dentária, placenta, além do sangue do cordão umbilical e de uma variedade de tecidos fetais, como o baço, pulmão, pâncreas, rins e fluidos amnióticos. Até recentemente, a medula óssea era considerada a melhor fonte desse tipo de célula, tanto para aplicações terapêuticas como clínicas. “Diante da dificuldade da punção da medula, que é feita por cirurgia e requer o uso de anestesia geral, o cordão umbilical surge como uma fonte alternativa e mais vantajosa para terapia celular”, diz Secco. “Neste caso, a obtenção é simples, segura, não interfere no parto, e não prejudica a mãe ou o bebê. Além disso, o cordão umbilical é um material que é descartado após o nascimento”, completa.

Atualmente, o sangue de cordão umbilical é armazenado porque ele é rico em um outro tipo de células-tronco, denominadas hematopoiéticas – precursoras das células sanguíneas. Desde a década de 80, essas células são utilizadas em transplantes no caso de doenças hematológicas (sanguíneas), tais como leucemias e anemias. O sangue de cordão umbilical é estocado e preservado em tanques de nitrogênio, em soluções especiais que mantêm a viabilidade das células. Teoricamente, nessas condições, a viabilidade e as características das células congeladas se mantêm indefinidamente. Entretanto, “na prática, isso ainda não foi avaliado, visto que este tipo de serviço é ainda recente, e não foi possível testar como se encontram as células após longos intervalos de tempo”, relata a pesquisadora.

A presença das células-tronco mesenquimais no sangue de cordão é controversa. Alguns trabalhos relatam o sucesso em seu isolamento, enquanto outros demonstram ausência ou baixa eficiência no isolamento dessas células a partir de sangue de cordão umbilical humano. Dados ainda não publicados pela equipe da USP indicam que o isolamento de células-tronco a partir do sangue de cordão umbilical é ao redor de 10%. “Este trabalho foi realizado por um dos colaboradores do nosso grupo, o professor Oswaldo Keith Okamoto, anteriormente à publicação dos nossos resultados. Ele obteve a mesma taxa de sucesso no isolamento de células-tronco mesenquimais do sangue de cordão umbilical (10%), porém em um número muito maior de amostras (100 amostras). Portanto, seus resultados apenas confirmam aquilo que estamos divulgando: o sangue de cordão umbilical é pobre em células-tronco mesenquimais”, conta Secco.

O armazenamento do sangue do cordão umbilical em bancos públicos e particulares tem causado muitos dilemas éticos. “São várias as questões sobre o assunto: a probabilidade de o indivíduo vir a realmente utilizar essas células no futuro, a viabilidade das células com tempo, quem deve pagar pela manutenção desses bancos de células, etc”, diz Alysson Renato Muotri, um dos co-autores do artigo e pesquisador associado do laboratório de genética do Instituto Salk para Estudos Biológicos da Califórnia, nos Estados Unidos. “Não acho que o armazenamento do próprio cordão vai resolver diretamente nenhuma dessas questões. Acho que a facilidade de obter células diretamente do cordão deve funcionar como um estímulo para pesquisa básica. Pesquisadores deverão procurar entender melhor o real potencial dessas células e a melhor forma de aplicação terapêutica. Como conseqüência disso, os dilemas devem diminuir”, acredita.

Outro dilema é que as opiniões são divergentes quanto ao armazenamento do sangue de cordão umbilical em bancos públicos e particulares. “Há quem defenda que seria mais vantajoso armazenar o sangue do cordão umbilical em bancos públicos, visto que a chance do próprio indivíduo ter uma doença do sangue (por exemplo, leucemias) é muito pequena e, se a doença for genética, o indivíduo não poderá usar suas mesmas células, que também apresentarão o mesmo defeito no gene. Sendo assim, não se justificaria pagar um alto valor para armazenar seu próprio material”, afirma Secco. Como o comprimento do cordão umbilical humano pode chegar até a 45 cm e o grupo utiliza apenas um pequeno fragmento de 7 cm para isolar uma grande quantidade de células mesenquimais, “é sugestivo a divisão da amostra, sendo que metade poderia ser estocada em um banco público e a outra metade seria armazenada no banco particular”, sugere.

Em suma, o armazenamento de sangue e de tecido do cordão umbilical permitiria o máximo aproveitamento de células-tronco mesenquimais e hematopoiéticas para possíveis aplicações terapêuticas no futuro. “A grande mensagem que gostaríamos de transmitir é: não descartem o cordão porque ele é rico em células-tronco mesenquimais que poderão ser importantes para diversas finalidades terapêuticas”, finaliza Secco.

Reforma tributária próxima do Congresso, mas ainda longe de um consenso

A reforma tributária voltou a estar em pauta devido às discussões sobre a renovação da CPMF. “Nós precisamos abrir mão das nossas propostas individuais e construir uma proposta consensual para o país. Estamos perto e vamos mandar logo [para o Congresso Nacional]”, declarou o presidente Lula, em programa de rádio no fim de outubro.

A reforma tributária, debatida há anos e tida como uma necessidade para impulsionar o crescimento do país, voltou a estar em pauta devido às discussões sobre a renovação da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF). O presidente Lula, em programa de rádio Café com o Presidente no fim de outubro, afirmou que a maior dificuldade da reforma é conciliar os diferentes interesses da União, dos estados e municípios, mas que o texto está quase pronto. “Nós precisamos abrir mão das nossas propostas individuais e construir uma proposta consensual para o país. Estamos perto e vamos mandar logo [para o Congresso Nacional]”, declarou o presidente.

A reforma tributária tem como objetivo simplificar a cobrança de impostos em âmbito federal, estadual e municipal. Os impostos como o PIS, Cofins, IPI, Cide Combustíveis, ICMS e ISS dariam lugar a apenas três: o Imposto de Valor Agregado Federal (IVA Federal), o Imposto de Valor Agregado Estadual (IVA Estadual) e o Imposto sobre Vendas e Varejo, na esfera municipal.

O atual modelo fiscal é tido como insustentável para o setor produtivo, pois é complexo e cumulativo, gerando o chamado ‘efeito cascata’, ou seja, o imposto é cobrado repetidamente nos vários elos da cadeia produtiva. Além disso, leva à conhecida guerra fiscal, mecanismo que permite aos estados e municípios modificar as alíquotas de seus tributos para atrair empresas e investidores. De acordo com o professor Francisco Lopreato, do Instituto de Economia da Unicamp, o sistema tributário brasileiro tem sua origem no Código Tributário Nacional de 1965 e, desde então, vem sofrendo emendas e leis para adaptá-lo às mudanças econômicas. “Todos esses ajustes criaram uma deturpação muito forte e, o sistema precisa ser revisto”, afirma.

A idéia de unificação dos tributos é considerada boa por Lopreato. Ele explica que um imposto de valor agregado elimina o ‘efeito cascata’, pois possui um sistema de créditos que funciona da seguinte maneira: quando uma empresa vende matéria-prima a uma outra, ela paga o imposto. No momento que esta segunda empresa agrega valor ao produto pronto (através da produção) e o revende, ela usa o valor pago pela primeira empresa como crédito dedutível do valor de seu imposto, recolhendo apenas proporcionalmente ao que ela adicionou. Atualmente, o ICMS estadual funciona desta maneira.

“Em princípio, o IVA é positivo, pois expande este conceito do valor agregado a outros tributos. O risco que temos é o de na unificação, optarmos pelas alíquotas praticadas mais altas e criar um imposto único muito alto”, pondera o economista. Esta é uma possibilidade que afetaria o setor produtivo. O problema é que como existem diversas alíquotas, os estados que praticam as mais altas, irão pressionar para a unificação nestes valores, para não perderem arrecadação. “A harmonização dos diversos interesses é o maior desafio”, conclui Lopreato.

Um ponto polêmico da unificação das alíquotas é a perda de espaço dos governos estaduais, pois os mesmos não poderiam definir a sua estrutura tributária. Lopreato defende que na reforma tributária seja discutida também a distribuição dos impostos. Atualmente, grande parte das verbas municipais passa diretamente do governo federal para os municípios. “Isso é um problema grave, pois os estados estão perdendo poder, mas eles é que conhecem melhor as necessidades de cada cidade”, afirma.

Ao perder a possibilidade de determinar as alíquotas de seus impostos, os estados também ficarão impossibilitados de fazer a ‘guerra fiscal’ para atrair novas empresas. Entretanto, para o pesquisador da Unicamp, esta política de incentivos existe no vácuo de uma política nacional de desenvolvimento industrial regional, que se mostra necessária. A guerra fiscal, segundo ele, faz com que os estados concedam incentivos de maneira desorganizada e, muitas vezes, nem obtenham benefícios muito grandes.

Outra grande discussão é a proposta da tributação dos impostos no destino da mercadoria, ao contrário do que ocorre atualmente, em que o imposto incide na origem. Os estados essencialmente exportadores de bens industrializados, como São Paulo e Amazonas, perderão receita. Internacionalmente, a tributação é feita no destino. Lopreato diz que para São Paulo o prejuízo será menor, já que o estado produz muito, mas também consome bastante. No Amazonas, devido aos incentivos da Zona Franca de Manaus, a diferença entre o consumo e a produção é extrema, e por isso, segundo Lopreato, essa questão necessitará atenção especial.

O economista da Unicamp defende um modelo de distribuição da arrecadação per capita, um sistema de transferências vertical entre a união, os estados e os municípios, e horizontal, entre os estados e municípios, considerando a população. “Isso precisa ser estudado; se você analisar as diferenças entre cidades muito próximas, como na região metropolitana de Campinas, em que se tem Paulínia com um recurso per capita dez vezes maior do que as outras, verá que é preciso mudar isso e distribuir os recursos de uma forma mais uniforme”.

Recentemente, foram implantadas algumas mudanças como a integração de cadastros estaduais, a nota fiscal eletrônica e o Sistema Público de Escrituração Digital (SPED), que estão contribuindo para a redução de custos com fiscalização, por parte dos governos, e para a queda dos custos empresariais com as áreas tributárias. Isto, aliado ao crescimento da economia, está também fazendo com que o Brasil tenha tido sucessivos recordes de arrecadação.

Lopreato entende que a atual discussão sobre a prorrogação da CPMF até 2011 deve ser feita dentro do contexto do sistema tributário como um todo. Entretanto, os desafios da reforma são enormes, e atingir um consenso será muito difícil.