Pesquisadora aponta re-politização das análises de políticas públicas

Durante algum tempo os estudiosos de políticas públicas afastaram-se das investigações realizadas sobre o poder. Atualmente o poder estaria sendo re-inserido na investigação. Estas foram as avaliações da pesquisadora portuguesa Cristina Sarmento, da Universidade Nova da Lisboa, num seminário internacional organizado pelo Nepp da Unicamp.

Durante algum tempo os estudiosos de políticas públicas afastaram-se das investigações realizadas sobre o poder. Centraram-se no Estado, nas burocracias, processos de tomada de decisão e nos grupos de interesse que disputam o governo ou fatias do poder estatal. Esta é a avaliação da professora Cristina Montalvão Sarmento, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova da Lisboa (UNL), Portugal. Para ela, a convergência de sentido que tem preponderado nas análises de políticas públicas neste começo de século reintroduziu a dimensão política e ideológica nas análises comparativas, “sobrevalorizando as culturas nacionais e as especificidades do poder territorializado nas comunidades políticas”.

Fruto de mais de duas décadas de reflexão e pesquisa sobre políticas públicas, os resultados apresentados por Cristina Sarmento num seminário internacional organizado pelo Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (Nepp) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) no dia 29 de outubro, incitam os próprios cientistas a prestarem mais atenção ao poder político imerso em suas análises e pesquisas. “Há uma relação intrínseca entre a forma como as universidades trabalham as políticas públicas – a cultura científica que se produz sobre elas – e a forma que tomam as políticas públicas”, explica. “Os nossos produtos intelectuais têm conseqüências sociais”, complementou o professor Geraldo di Giovanni, do Nepp e do Instituto de Economia da Unicamp, que também esteve presente no seminário.

A cientista política portuguesa compara as perspectivas e correntes teóricas predominantes nas análises de políticas públicas realizadas, desde antes dos anos 60, na Inglaterra, França, Alemanha e Estados Unidos. No momento atual, ela verificou que os estudos comparativos têm sido utilizados como principal metodologia da ciência política. Este tipo de abordagem proliferou nas diferentes comunidades político-científicas, indicando uma convergência de sentido nas pesquisas. No entanto, ressalta Cristina, “o avanço destes estudos tende a sobrevalorizar as divergências existentes, permitindo a identificação das culturas políticas nacionais”.

O estudo de Cristina Montalvão Sarmento reconhece que os modelos teóricos identificados por ela em diferentes momentos históricos, nos países pesquisados, estão relacionados com a cultura política de cada sociedade. Os franceses, por exemplo, que nos anos 60 tratavam o Estado como um ator social, hoje valorizam a dimensão simbólica para explicar a legitimação do poder. Os americanos, que nos anos 60 focavam as análises na burocracia estatal, hoje dão ênfase à reconstrução de trajetórias de uma perspectiva institucionalista-histórica. Estas distinções não foram mero acaso. “Nos anos 60, enquanto a Inglaterra reforça o direito público, na França ele é negado”, compara. Descrentes do direito público, os franceses focaram seu interesse nas organizações, “esclarecendo os caminhos sinuosos de aplicação da lei”, explica Sarmento.

Fatores sociais, políticos e culturais específicos de cada país levaram as suas comunidades científicas a seguirem certo sentido e privilegiarem certas tendências teóricas. As escolhas não são neutras. Ao mesmo tempo, analisa ela, “aquilo que as escolas de ciência estão a discutir coloca-se como opção para a sociedade. Se um líder político estudou ou ensinou estas tendências, deverá aplicá-las não no seu modo de fazer políticas públicas, mas no seu modo de fazer política”. Por isso, os estudos comparativos, ao propiciarem a identificação das correntes teóricas predominantes em diferentes países – e da ancoragem cultural que as influencia -, indicariam uma re-politização e re-ideologização das análises de políticas públicas. O poder estaria sendo re-inserido na investigação.

Diagnóstico errado em crianças com dificuldade de aprendizagem atrapalha

Várias crianças são diagnosticadas com uma enfermidade para justificar seu mau desempenho escolar. Dislexia, hiperatividade, déficit de atenção, déficit do processamento auditivo e deficiência mental são os nomes mais comuns dados ao problema. Porém, o “diagnóstico” feito pelos educadores está correto em menos de 10% dos casos.

Várias crianças são diagnosticadas com uma enfermidade para justificar seu mau desempenho escolar. Dislexia, hiperatividade, déficit de atenção, déficit do processamento auditivo e deficiência mental são os nomes mais comuns dados ao problema. Porém, o “diagnóstico” feito pelos educadores está correto em menos de 10% dos casos. Isso é o que aponta o trabalho dos pesquisadores do Centro de Convivência de Linguagens, vinculado ao Laboratório de Neurolingüística da Unicamp.

Fundado em 2004 pela professora Maria Irma Hadler Coudry, o grupo se destina ao acompanhamento de crianças e jovens a quem foi atribuída alguma doença para justificar o mau desempenho escolar. “Muitas crianças recebem um diagnóstico da escola para justificar suas dificuldades de aprendizagem, mas, quando trabalhamos com elas, percebemos que na maioria dos casos esse diagnóstico não se justifica”, explica Coudry.

Muitos pais com filhos diagnosticados com uma enfermidade na escola – diagnóstico que, muitas vezes, recebe respaldo de profissionais da área médica, como fonoaudiólogos – procuram a medicina da Unicamp para tentar tratá-los, e acabam sendo encaminhados a Coudry. “As pessoas me procuram por eu trabalhar com questões de patologia e linguagem. Logo eu tinha uma lista com mais de 10 nomes de crianças com esse mesmo problema, então resolvi montar esse grupo de estudos”, explica.

O trabalho realizado no CCAzinho, como é chamado por seus integrantes, vai além da pesquisa científica e envolve também o lado social da questão, dando atenção especial às dificuldades que a criança tem de enfrentar ao receber um “rótulo” de uma deficiência e a exclusão que ela sofre. “O ‘rótulo’ atribuído à criança, seja ‘dislexia’ ou qualquer outro ‘distúrbio de aprendizagem’, repercute de forma negativa em sua vida, pois reforça apenas o que ela não é capaz de fazer, mexendo com sua auto-estima e a desestimulando ainda mais a aprender”, explica a linguista Michelli Alessandra da Silva, uma das pesquisadoras do grupo.

Todas as crianças atendidas pelo centro receberam um diagnóstico que justificava seu mau desempenho escolar. Porém, após avaliação e acompanhamento no CCAzinho, os pesquisadores constataram que das 14 crianças encaminhadas até hoje ao grupo, apenas duas realmente apresentavam uma doença. “Esses diagnósticos geralmente estão errados. O mau sucesso da criança na escola se deve a um conjunto de fatores que, muitas vezes, a escola não considera”, explica Coudry. A falta de acesso a material de leitura; a responsabilidade precoce de ter que ficar sozinho em casa cuidando dos irmãos, ou até mesmo de trabalhar para ajudar a família; a falta de comunicação na escola; o despreparo e a sobrecarga dos professores; e a falta de recursos material e humano nas instituições de ensino são alguns dos fatores apontados pelas pesquisas do grupo como dificultadores da aprendizagem. “São tantas barreiras e empecilhos que chega a ser incrível que algumas crianças consigam aprender num ambiente tão flagelado”, afirma a pesquisadora.

Os estudos revelam ainda que a distância entre as tarefas propostas pela escola e a vida da criança é um dos maiores empecilhos para a aprendizagem. Exercícios descontextualizados, tarefas fragmentadas, enunciados equivocados e atividades mecânicas (como ditados, cópia e listas de palavras) não exigem reflexão e não fazem sentido para elas, tornando-se barreiras na hora de aprender. “Como as crianças podem cumprir corretamente uma tarefa que elas não entendem e para qual não vêem sentido?”, indaga Silva.

Epidemia

“Acho importante esclarecer que em nenhum momento negamos a existência real dessas patologias, o que negamos é que elas tenham se tornado uma epidemia”, afirma Sônia Sellin Bordin, fonoaudióloga e pesquisadora do CCAzinho. E continua: “Quando uma criança nessas condições recebe um diagnóstico de distúrbio de aprendizagem ou mesmo de dislexia, cria-se um ciclo vicioso porque ela passa a corresponder ao diagnóstico recebido e a escola passa a esperar menos dela. Facilita-se sua passagem pela escola, dificulta-se sua entrada ou permanência nos processos de aprendizagens de fato”.

Um caso que ilustra bem o problema é o de BN, que foi diagnosticada aos cinco anos de idade como portadora de dislexia. Sem receber atenção da escola, BN foi passando de ano até terminar o ensino médio. Na prova de vestibular, que era de múltipla escolha, conseguiu a pontuação para ingressar no curso de Pedagogia. Mas ao iniciar a graduação, suas dificuldades em compreender e redigir um texto eram tantas que acabou procurando ajuda na Unicamp. Ela não tinha mais idade para participar do CCAzinho, mas mesmo assim foi atendida individualmente por uma pesquisadora do grupo, que a ajudou a enfrentar suas dificuldades. BN conseguiu concluir seu curso e trablhar na profissão.

Outro caso emblemático é o de LS, de nove anos, que por não conseguir ler ou escrever, recebeu o diagnóstico de alteração do processamento auditivo e dificuldade de aprendizagem. Na avaliação para ser atendida pelo CCAzinho, LS mostrou seu caderno, onde havia várias páginas cheias de cópias de seu próprio nome. “Uma das atividades que as crianças que não ‘acompanham’ a classe mais faz é a cópia. Elas apresentam cadernos inteiros apenas de cópia, mas não lêem uma só palavra escrita ali”, explica Bordin. “Essa criança segue todos os dias, quatro horas por dia, nesse compasso. Um dia, alguém resolve que essa criança não aprende porque deve ter algum problema, que supostamente se localiza no corpo da criança”, relata.

Aprendendo a entender

“Nenhuma das crianças que atendemos hoje tem uma doença, mas todas têm uma dificuldade, e precisamos trabalhar isso”, explica Coudry. Segundo a pesquisadora, é preciso ter “sensibilidade” para perceber os processos de aquisição de linguagem pelos quais a criança passa, e considerar todos os outros fatores externos que interferem nesse caminho. As pesquisas realizadas no centro revelam a diversidade da relação da criança com a fala, a linguagem e a escrita e sobre o modo como o processo de aquisição é conduzido. “É preciso aprender a entender”, afirma.

E é isso que o CCazinho se propõe a fazer. Os pesquisadores do centro buscam colocar as práticas da escola mais próximas das crianças, através de atividades que façam sentido para elas, como trabalhar no computador, escrever um jornal, deixar bilhetes para os amigos, criar um roteiro de cinema, encenar peças de teatro, discutir notícias. “Essas são práticas que fazem parte da vida dessas crianças e que portanto fazem sentido para elas”, afirma Coudry. Essa experiência vêm mostrando que as chamadas “patologias” são na verdade dificuldades que podem ser superadas. O resultado já pode ser confirmado: as 10 crianças atendidas hoje pelo centro já apresentaram avanços no desempenho escolar, com sensível melhora da leitura e da escrita.

Não incorrer em anacronismo foi êxito do historiador Caio Prado Jr.

Para Fernando Novaes, da USP e Unicamp, Caio Prado Jr. não caiu no pecado de, anacronicamente, partir da história de Portugal para explicar a história do Brasil, como se fosse mera extensão dela. Não incorrer em anacronismo teria sido um de seus grandes êxitos historiográficos.

Entender o sentido da colonização brasileira é o grande tributo intelectual para a história do país creditado a Caio Prado Jr.. Mas esta não foi sua única contribuição. “Ele tinha sensibilidade para o problema do anacronismo”, destaca o historiador Fernando Novaes, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade de São Paulo (USP). Caio Prado Jr. não caiu no pecado de, anacronicamente, partir da história de Portugal para explicar a história do Brasil, como se fosse mera extensão dela.

“A história da colonização é a história de Portugal e a pré-história do Brasil ao mesmo tempo. E o problema está no ‘ao mesmo tempo”, afirma Novaes. “É verdade que a colônia brasileira foi parte da metrópole portuguesa – e é como os portugueses tendem a vê-la -”, destaca Novaes, “mas, contra-argumenta ele, para se tornar nação precisou se rebelar contra a metrópole; precisou negar a metrópole”. Novaes fez essa análise na conferência de abertura de um seminário em homenagem aos 100 anos de Caio Prado Jr. O seminário aconteceu em outubro no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, e foi organizado pelo Centro de Estudos Brasileiros (CEB).

Crítico de uma nova geração de historiadores que costumam utilizar de modo descuidado conceitos criados contemporaneamente para narrar o passado – e com isso incorrer em anacronismo -, Fernando Novaes enunciou análise inovadora sobre a obra de Caio Prado Jr.. Não incorrer em anacronismo teria sido um de seus grandes êxitos historiográficos.

O problema do anacronismo na história do Brasil, explica Novaes, começa na viagem de Cabral e na descoberta. “O Brasil não estava encoberto, como é que foi descoberto?”, pergunta ele em tom brincalhão e ao mesmo tempo provocativo. Para ele, a viagem e a descoberta não fazem parte da história do Brasil, mas da história de Portugal. O problema do anacronismo na história do Brasil, avalia ele, é que a ela foi incorporada a história de Portugal, e com isso foram acrescentados à nossa oito séculos de história.

Durante o seminário, foram expostas diversas fotos tiradas por Caio Prado Jr. e que fazem parte do acervo da biblioteca do IFCH. Cenas comuns do cotidiano brasileiro. Segundo as legendas, as visões do Brasil capturadas por Prado Jr. demonstram sua paixão pelo Brasil. Por isso ele teria tratado da especificidade do Brasil: porque o Brasil era sua preocupação. Para entender a especificidade da colonização brasileira, ele tomou como objeto de estudo a colonização em geral. E foi este recorte, explica Novaes, que permitiu a ele romper com as perspectivas anacrônicas e desenvolver a problemática que resultou no estabelecimento do sentido da colonização.

O foco no Brasil, na análise de Novaes, também foi decisivo em outro aspecto para o historiador Caio Prado Jr. Ele era um historiador marxista, e não um marxista historiador, pontua ele. “O assunto era o Brasil; o marxismo era a ferramenta”. Segundo contou Novaes, certa vez perguntaram a Prado Jr. por que, sendo ele um marxista, não seguia a cartilha. Ele então teria respondido que era o seu objeto que conduzia a sua escolha, e não a sua escolha que conduzia o seu objeto – ou a sua percepção do objeto. Para Novaes, esta é uma lição importante: Prado Jr. soube dialogar com as ciências sociais.

Este diálogo não existia na historiografia tradicional, até porque as ciências sociais não existiam institucionalmente. A historiografia moderna dialoga, mas por vezes de forma problemática, avalia Novaes. “O historiador tem que saber historicizar conceitos, para não criar anacronismo”, explica. “Ele pode usar os conceitos na dimensão explicativa, mas não na narrativa. O problema é que na história essas coisas estão juntas. E é por isso que é difícil, e é por isso que é interessante”. Na síntese de Fernando Novaes, a história é narrativa e, sendo narrativa, é analítica. Para ele, Caio Prado Jr. conseguiu narrar a história do Brasil analiticamente.

O sentido da colonização

“O sentido da colonização” aparece no princípio do livro Formação do Brasil Contemporâneo. Nele, Caio Prado Jr. explica que a colonização funcionou como uma empresa comercial complexa. Ela visava atender aos interesses mercantis da expansão marítimo-comercial européia, que se estendeu pelo século XV e seguintes. Foi por isso que a sociedade e a economia brasileiras foram organizadas e estruturadas com base na produção agro-exportadora de larga escala, caracterizada pelo latifúndio, pela monocultura e pela escravidão. A tese de Prado Jr. é a de que a colonização tomou este rumo devido aos interesses comerciais da Europa, aos quais o Brasil era submetido.