Teste de DNA: democratização de informação e tecnologia?

No Brasil, a popularização das técnicas genéticas é considerada uma forma de garantir o direito à informação. Essa aposta tem impulsionado o “mercado de paternidade” no país e levantado questões sobre os limites e impactos sociais das tecnologias relacionadas ao DNA.

O Brasil faz parte do grupo de países que considera a popularização das técnicas genéticas uma forma de garantir o direito à informação. Essa aposta tem impulsionado o “mercado de paternidade” no país, gerando uma ampliação da oferta e procura dos testes de DNA, um maior investimento em pesquisas que visam reduzir custos dessa tecnologia, bem como orientado a criação de políticas públicas que permitam seu acesso e uso.

Contudo, em outros lugares do mundo, o uso de tecnologias da medicina são mais restritas e regulamentadas. Na França, por exemplo, é proibido realizar exames de DNA sem autorização judicial, sendo os infratores sujeitos a um multa de 15 mil euros ou à pena de um ano de reclusão. O uso dos testes de DNA coloca em jogo as noções modernas de democracia, informação e tecnologia e, para os pesquisadores, expõe problemas que ora recaem sobre os limites e impactos da própria tecnologia, ora sobre as pessoas e o Estado, que deveriam aprender a lidar com as ciências e suas criações.

A antropóloga Claudia Lee Williams Fonseca, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que tem se dedicado a pesquisar o impacto dos exames de DNA nas relações familiares, acredita que o Brasil deveria aproveitar o momento de amplas discussões sobre bioética para debater, também, o aumento do número de testes de paternidade. “Sem dúvida, os cinco princípios consensuais do projeto Genoma – autonomia, privacidade, justiça, eqüidade e qualidade – teriam muito a ver com os exames de DNA. Com o teste de paternidade, estamos enfrentando situações que correm o risco de atropelar a dignidade humana básica ou de violar a privacidade de informações, especialmente de crianças”, explica, ressaltando que o uso do exame de DNA para negar uma paternidade já estabelecida socialmente, pode ter resultados devastadores.

Fonseca critica o que considera um uso abusivo dos testes de paternidade e avalia que a interferência de elementos da esfera jurídica e médica nas relações familiares tem levado a biologização dos laços de parentesco que, durante toda a história, teriam sido construídos de forma social.

Para atender ao crescimento da demanda popular pelos testes de paternidade, o poder público tem investido em várias iniciativas. Desde 1999, o estado de São Paulo paga os exames de DNA para pessoas que não têm condições de arcar com os custos. O governo do Rio Grande do Sul faz o mesmo. Na segunda metade de 2002, ingressaram no sistema jurídico gaúcho mais de mil pedidos de investigação paterna por mês. No mesmo período, aproximadamente 500 testes eram agendados mensalmente pelo Serviço Medico Jurídico, enquanto cerca de oito mil pedidos aguardavam numa fila de espera que poderia durar até um ano. O mesmo fenômeno estaria se repetindo em quase todos os estados brasileiros, conforme relata a Fonseca.

Os pesquisadores também têm buscado tornar mais acessível, simples e barata essa tecnologia. Karina Fraige, química e doutoranda na USP desenvolveu, em seu mestrado, um novo método de análise de paternidade, ainda em fase de experimentação, que utiliza tecnologia nacional, o que permite a desvinculação dos kits de reagentes – importados e muito caros – usados no testes feitos atualmente. A montagem do equipamento alternativo fica de dez a quinze vezes mais barato que o comercial. Para Fraige, o método simplificado tornaria os testes de verificação de paternidade por análise de DNA mais acessíveis à população, sobretudo à de baixa renda.

Outro fator de popularização do DNA é a multiplicação de laboratórios que trabalham com genética. De acordo com Betânia Maria Pena, diretora administrativa do Laboratório Gene, nos anos 90, vários laboratórios brasileiros, interessados no “mercado da paternidade”, começaram a adquirir kits de exames de DNA desenvolvidos pelo FBI para identificação de criminosos e a utilizá-los para um fim diferente: investigação de paternidade. “Comprando o kit e o equipamento e fazendo um curso de 2 dias, profissionais se aventuram a realizar um teste que vai influenciar a vida de várias pessoas”.

Além disso, os preços dos exames de DNA baixaram muito nos últimos anos e os procedimentos se tornaram mais simples. Hoje, é possível se fazer um teste de paternidade sem sair de casa. Por R$ 185,00 você recebe em casa um kit fornecido pelo laboratório, faz a coleta e envia o material para a análise por correio. Entretanto, segundo Pena, custos tão baixos merecem atenção. “Há como diminuir o preço dos exames com equipamentos modernos e novas técnicas. Mas isto é diferente de ter um preço baixo devido à simplificação do exame, testando uma porção pequena do DNA e obtendo dados incompletos para preparar o laudo”.

Genética, lei e relação social

Para a antropóloga Claudia Fonseca, o mais preocupante em relação às tecnologias envolvendo o DNA é a tendência em incorporá-las em políticas públicas. Exemplo disso é o uso de testes de paternidade no combate à pobreza das famílias chefiadas por mulheres e alerta: “a afirmação de um fato genético, o cumprimento de uma lei e o desenvolvimento de uma relação social são processos distintos”.

Para Dayse Silva, bióloga da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) especializada em genética forense, as tecnologias envolvendo o DNA não devem ser concisderadas soluções simples para tudo, como é corrente no imaginário popular. “As publicações mais sérias caracterizam a metodologia de análise por DNA como uma análise complementar não só em relação ao diagnóstico de doenças, mas também na investigação forense. Nos dois casos, a análise por DNA é apenas um elemento de prova”, afirma. Da mesma forma, Fonseca destaca que juízes responsáveis por processos de investigação de paternidade têm deixado de ouvir testemunhas e de levar em consideração aspectos sociais, “indo, em geral, direto à prova contundente do DNA”.

Já a geneticista Gilka Gatttás avalia que a popularização do DNA é boa, mas os leigos precisariam ser melhor informados sobre os alcances e limites das tecnologias genéticas. “É um processo lento que, no futuro, deverá resultar em uma sociedade que sabe decidir melhor sobre si mesma: que exames fazer, como, para que, quando, ou mesmo quando não se deve fazer determinado procedimento”.

Gilka é coordenadora do projeto “Caminho de volta: busca de crianças e adolescentes no estado de São Paulo” – desenvolvido pela Faculdade de Medicina da USP – que visa criar um banco de DNA para localizar e identificar crianças desaparecidas no estado.

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Faltam alunos e docentes negros nas universidades

Dados indicam que o percentual de alunos e docentes negros nas universidades públicas brasileiras gira em torno de 0,5% e, se mantidas as condições sociais atuais, a projeção para os próximos 170 anos indica que esse índice não ultrapassará 1% do total. Para mudar este quadro, pesquisadores reunidos na 60ª Reunião Anual da SBPC acreditam ser necessário incentivar o ingresso dos negros e pardos no meio científico.

Dados de uma pesquisa de 2003 do antropólogo José Jorge de Carvalho, da Universidade de Brasília (UnB), mostram que o percentual de alunos e docentes negros nas universidades públicas brasileiras gira em torno de 0,5%. Mantidas as condições sociais de hoje, a projeção de Carvalho para os próximos 170 anos indica que esse índice não ultrapassará 1% do total.

Tristes informações como essas preocupam uma das maiores instituições científicas brasileiras, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). A atenção se traduziu em debates sobre o tema durante a 60ª Reunião Anual, concluída no último mês, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Dentre as metas figurou a possibilidade de incentivar o ingresso dos negros e pardos no meio científico.

O consenso maior entre os palestrantes ficou a cargo da defesa do sistema de cotas, algo que vem sendo amplamente discutido. Para Sonia Guimarães, pesquisadora do Centro Técnico Aeroespacial (CTA) e palestrante da conferência, para falar do negro na ciência é preciso tratar sobre a entrada dele na universidade. “Como é que os negros vão adentrar no meio científico se só 3% da população universitária brasileira [alunos] é negra?”, questiona a pesquisadora.

As cotas, para Guimarães, são medidas que visam diminuir o impacto da desigualdade social entre brancos e negros visualizados nos dados estatísticos. Por isso, ela criticou o manifesto “113 cidadãos anti-racistas contra as leis raciais” entregue em abril deste ano ao presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes. Tal documento foi assinado por artistas e intelectuais, entre eles Caetano Veloso e Ruth Cardoso, falecida recentemente. A função principal do documento é mostrar que a Lei de Cotas é inconstitucional e geradora de segregação racial, citando, por exemplo, artigos da Constituição brasileira como o 19 que diz: “é vedado à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si”.

De acordo com a pesquisadora do CTA, as estatísticas apontam que essa distinção já ocorre na prática. Dados divulgados pelo Portal UOL e jornal Folha de S. Paulo, em maio deste ano, mostram que mulheres negras ganham 51% do salário das brancas na cidade de São Paulo e que negros ocupam apenas 3,5% dos cargos de chefia. Sonia Guimarães ressalta que os negros dificilmente conseguirão reverter este quadro se não conseguirem cursar uma universidade.

“O manifesto contra as cotas conclui que, basicamente, são as diferenças de renda e tudo que vem associado a elas, e não de cor, que limitam o acesso ao ensino superior. Se a cor não tem nada a ver com isso, porque será que entre os mais pobres só 30% são brancos e 69% são pardos e negros?”, questiona Guimarães.

Unipalmares e ações afirmativas

Para a química Denise Alves Fungaro, pesquisadora do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), as ações afirmativas, como a Lei de Cotas, são medidas importantes contra os fatores negativos que impedem a entrada do negro no meio acadêmico. Entre tais fatores ela cita principalmente o ensino público básico de baixa qualidade, a baixa renda familiar da população negra e a falta de bolsas de pós-graduação. Em seu relato pessoal, a pesquisadora explica que a ausência desses fatores foi determinante para o seu sucesso acadêmico e profissional na área de química ambiental.

Apesar dos problemas, o número de negros nas universidades públicas brasileiras tem aumentado nos últimos anos graças, segundo Fungaro, as ações afirmativas. Além das cotas, ela destaca outros acontecimentos que contribuem tal aumento. O primeiro foi a proliferação dos cursos pré-vestibulares comunitários na década de 1990 que passaram a preparar estudantes de baixa renda para o vestibular. O segundo trata sobre idéias inovadoras nessa área, como a criação da Universidade da Cidadania Zumbi dos Palmares em 2000 na cidade de São Paulo.

A Unipalmares é uma instituição sem fins lucrativos focada na formação de afrodescendentes. Graças a parcerias feitas com diversas empresas do setor privado, os dois mil alunos que atualmente cursam os três cursos oferecidos – direito, administração de empresas e tecnologia de transportes – pagam mensalidades abaixo de um salário mínimo. Em março desse ano a primeira turma de graduação se formou. “Oitenta e nove porcento deles eram negros”, diz Sonia Guimarães.

A idéia principal trabalhada nessa conferência é que medidas especiais precisam ser tomadas para assegurar que o negro, historicamente desfavorecido socialmente, consiga cursar uma graduação e, posteriormente, receba apoio para se especializar ao ponto de ter condições de trabalhar com ciência e tecnologia. Para Sonia Guimarães, o sistema de cotas é uma oportunidade capaz de gerar um futuro melhor a muitos afrodescedentes talentosos. “Se ficarmos podando essa chance da maioria das pessoas [negras] vamos ficar outros 170 anos nas mesmas condições. Precisamos agir diferentemente”.

Pesquisador aponta falta de diálogo entre sociedade, escola e setor privado

José Armando Valente, pesquisador colaborador do Núcleo de Informática Aplicada à Educação da Unicamp, aponta a necessidade de novos modelos de diálogo entre o sistema educacional e as empresas. Essa distância é tamanha que as empresas muitas vezes têm que apelar para a “re-formação” de estudantes recém-formados.

Como aproximar, sem traumas, escola e mercado para a formação de um cidadão com poder de decisão sobre seu futuro? O livro do pesquisador José Armando Valente, A aprendizagem na era das tecnologias digitais, lançado no segundo trimestre deste ano, trata sobre este tema, um tanto quanto nebuloso para os educadores e empresários nacionais. Valente, professor da área de Multimeios do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador colaborador do Núcleo de Informática Aplicada à Educação (Nied), aponta a necessidade de novos modelos de diálogo entre os distantes sistema educacional e as empresas. Essa distância é tamanha que as empresas muitas vezes têm que apelar para a “re-formação” de estudantes recém-formados. “A Petrobras, por exemplo, gasta um ano para re-formar um profissional recém-formado”, diz.

Para o pesquisador, a escola, nos moldes atuais, é responsável pela formação geral do estudante contribuindo para um distanciamento do mesmo em relação ao mercado de trabalho, problema também observado nas universidades. “Os professores universitários são refratários em aceitar aproximações com as empresas e nos EUA esse diálogo é ativo e se dá via os ‘escritórios de Liaison’, que fazem a ponte entre demandas das empresas com os serviços que a universidade pode oferecer”, explica o pesquisador.

Ele também aponta para a tendência da aprendizagem continuada como uma realidade que deve ser enfrentada, “a empresa tem quadros enxutos e não pode mais dispor de um ano, por exemplo, para que seus funcionários voltem a estudar. É preciso que os próprios funcionários tenham consciência da necessidade e vontade para procurar alternativas fora da escola e fora da empresa”. No caso de conhecimentos específicos, como inglês técnico para operação de um maquinário, por exemplo, a empresa pode entrar como facilitadora do processo de aprendizagem, direcionando o método de acordo com suas necessidades. O processo contínuo de aprendizagem é outro exemplo que evidencia a distância e defasagem dos currículos escolares, pois a escola não está preparada para ensinar como usar a tecnologia para dar continuidade ao aprendizado, que deveria ser uma espécie de moto-perpétuo.

Para aproximar as duas partes desse diálogo em suspensão, Valente cita dois exemplos: o School Academies, projeto do Reino Unido onde empresas financiam escolas públicas e direcionam os currículos dos alunos e os exemplos das empresas júnior, iniciativa que vem ganhando espaço nas universidades brasileiras. De acordo com ele, é importante que se crie um modelo fixo de diálogo entre sociedade, escolas e empresas, com um conselho formado por representantes dos três setores na troca de necessidade e soluções conjuntas. “Precisamos ter ‘escolas aprendentes’”, sugere.