Novas aplicações para o veneno da jararaca

Veneno da jararaca continua revelando a presença de toxinas ativas, segundo pesquisadores do Departamento de Farmacologia da Unicamp. Essas substâncias podem vir a ser modelos para medicamentos ou auxiliares em pesquisas para o entendimento dos mecanismos de toxicidade dos venenos.

A maioria dos hipertensos não sabe, mas o captopril – cujo nome comercial é capoten – foi desenvolvido a partir de uma substância encontrada no veneno da jararaca brasileira. Comercializado desde os anos 70, ele ainda é o medicamento para pressão alta mais usado no mundo. E as jaracacas continuam revelando componentes, cujo isolamento, caracterização química e utilidade são objetos de estudo. Exemplos são os pesquisadores do Departamento de Farmacologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que têm se dedicado à busca de substâncias presentes nesses venenos cuja atividade possa ser útil para o entendimento da fisiologia e para a descoberta de novos medicamentos.

Usando técnicas bioquímicas e músculos isolados de camundongos e aves, a farmacêutica Priscila Randazzo e a fisioterapeuta Charlene Galbiatti estudam as características químicas e os efeitos biológicos de toxinas isoladas de venenos de duas espécies de jararacas (Bothrops pauloensis e Bothrops marajoensis). As pesquisadoras encontraram duas novas toxinas, Bp-12 e B-maj9, que paralisam os músculos dos animais. Segundo elas, os resultados indicam que as toxinas interferem na transmissão do impulso nervoso para o músculo e também afetam o tecido muscular.

Do ponto de vista clínico, o veneno da jararaca não é considerado paralisante. No Brasil, essa ação é atribuída apenas a dois gêneros de serpentes: coral e cascavel. Por outro lado, Randazzo e Galbiatti explicam que toxinas de venenos que não se manifestam clinicamente podem servir de modelo para a síntese de novos medicamentos e também para ajudar a compreender como funciona o organismo e o mecanismo de ação dos venenos.

Esse objetivo foi atingido pela pesquisadora Léa Rodrigues Simioni, pioneira no estudo da ação paralisante das jararacas e coordenadora das pesquisas desenvolvidas por Randazzo e Galbiatti. Contrariando as expectativas de quem acreditava que a ação paralisante era exclusividade de cascavel e coral, Simioni confirmou experimentalmente na década de 80 o mesmo efeito no veneno de uma jararaca (Bothrops jararacussu) e dele isolou a toxina responsável pelo efeito. A colaboração com outros pesquisadores permitiu a caracterização química do componente paralisante, que foi denominado bothropstoxina e se tornou uma das mais importantes ferramentas (auxiliares) de pesquisa. Ela é utilizada por pesquisadores de outros países no entendimento dos mecanismos de toxicidade dos envenenamentos e da própria fisiologia geral.

O efeito terapêutico é também uma das perspectivas do estudo das toxinas, lembra Galbiatti. Exemplo disso é a toxina botulínica, famosa por seu nome comercial “Botox”, usada para tratar doenças e até como cosmético, suavizando rugas. Embora seja uma toxina de origem bacteriana, as propriedades terapêuticas e cosméticas da Botox também se devem à habilidade de impedir a transmissão do impulso nervoso para o músculo.

Porém, do ponto de vista terapêutico, o grande inconveniente das toxinas de venenos de serpentes é o dano que muitas delas causam no tecido muscular. É o caso da Bp-12, toxina estudada por Randazzo em sua tese de doutorado, que está em fase final. Mas isso, segundo as pesquisadoras, não exclui a toxina de possíveis aplicações. Afinal, a mesma ciência que revela propriedades de aplicação em medicina, investiga as origens dos efeitos tóxicos e as condições em que eles se manifestam. Isso permite que ela própria, a ciência, encontre meios de controlar ou anular os efeitos indesejáveis.

Enzimas especializadas podem ajudar nas sínteses de fármacos

99% das enzimas encontradas na biodiversidade, solo, rios, ar, etc. não conseguem sobreviver nas condições em que as reações químicas são feitas nos laboratórios e nas indústrias, por isso, isolar e caracterizar enzimas que sejam capazes de tornar possível reações complexas é um grande desafio.

Encontrar na natureza novas enzimas pode auxiliar, e muito, processos de fabricação de fármacos e sabonetes, por exemplo. Isso porque as enzimas são catalisadores biológicos, ou seja, funcionam como aceleradores naturais de uma reação química. Com isso, elas podem substituir com algumas vantagens os catalisadores sintéticos. A descoberta na natureza dessas enzimas especializadas é o trabalho da equipe coordenada pela química Anita Jocelyne Marsaioli, professora do Labiosin (Laboratório de Biocatálise e de Síntese Orgânica), localizado no Instituto de Química (IQ) da Unicamp.

A doutoranda Simone Mantovani, integrante da equipe, se dedica a encontrar enzimas capazes de resolver um dos grandes obstáculos de processos químicos, as misturas racêmicas. Trata-se de uma mistura de duas substâncias quase idênticas chamadas de quirais. Separar misturas racêmicas é um desafio para os químicos. Entretanto, sabe-se que as enzimas são capazes de reconhecer substâncias quirais e atuam, preferencialmente, em apenas um dos compostos da mistura racêmica, daí o interesse em fazer a bioprospecção dessas enzimas.

O uso das misturas racêmicas é vedado por entidades internacionais de controle de medicamentos porque uma de suas estruturas pode provocar efeitos indesejados. Foi o caso do medicamento Talidomida, utilizado para conter enjôos durante a gravidez e que provocou deformidades em fetos. Encontrar uma enzima que facilite o isolamento do composto desejado representaria um avanço em algumas etapas do processo de fabricação de fármacos.

Modificar geneticamente as enzimas para torná-las mais resistentes é outra vertente das pesquisas realizadas no Labiosin. Para aprender os processos envolvidos, a química Luciana Gonzaga de Oliveira, bolsista de pós-doutorado da Fapesp, participou do Programa de Pós-doutoramento no grupo de Manfred T. Reetz no Max Planck Institut für Kohlenforschung, na Alemanha.

A pesquisa envolveu o melhoramento de atividades enzimáticas por Evolução Dirigida, ou seja, os pesquisadores interferem no processo natural de evolução dos microorganismos que produzem essas substâncias. “As enzimas de hoje são produto da evolução biológica que tem ocorrido por vários bilhões de anos e elas catalisam reações com alta especificidade e seletividade”, diz Oliveira, “como estão ajustadas ao seu papel fisiológico, a sua estabilidade e atividade às vezes estão distantes do que os químicos orgânicos querem”, complementa.

O processo de bioprospecção

Segundo Marsaioli, a presença de enzimas com atividade de interesse é pesquisada em microorganismos chamados “de origem”, adquiridos de instituições habilitadas como a Fundação André Tosello, de Campinas, ou a Coleção Brasileira de Microrganismos de Ambiente e Indústria – CBMAI, localizada no CPQBA/UNICAMP ou ainda através da triagem da biodiversidade, como, por exemplo, de solos de diferentes regiões do Brasil, feita por pesquisadores.

No laboratório, começa o processo de procura da atividade desejada, por exemplo, a resolução das misturas racêmicas. O primeiro passo consiste em verificar a presença nos microorganismos das enzimas ativas. Segundo Mantovani, a equipe escolheu usar a técnica chamada de triagem rápida de alto desempenho (HTS, sigla em inglês). Um artigo, publicado por Marsaioli na revista Journal of the Brazilian Chemical Society (JBCS), descreve os procedimentos.

Estes testes, ensina Oliveira, são miniaturizados e em batelada, isto é, um grande número de testes é feito ao mesmo tempo, porque em uma microplaca com “pocinhos” de volume de 200µL elas testam, de uma só vez, 96 microorganismos diferentes. Quando o microrganismo tem a enzima com a atividade esperada, aparece gradativamente no local uma fluorescência, ou brilho, que mostra ainda se a reação é rápida ou lenta.

O próximo passo é verificar quais os produtos formados e a proporção deles no conjunto, através de um equipamento chamado de cromatógrafo a gás. O aparelho pode ter detector por tamanho de partículas (espectrômetro de massas) ou por chamas, conhecido por FID (sigla em inglês), Esses equipamentos, segundo Oliveira, fazem avaliações rápidas, mais econômicas e ainda têm a vantagem de dispensar o uso de solventes orgânicos como o metanol, que é tóxico.

Uma vez escolhidos os microrganismos, se repetem os testes analíticos, mas agora com as substâncias que as pesquisadoras chamam de “reais” por serem mais caras. “Os substratos reais possuem maior valor agregado porque resultam de sínteses químicas mais modernas”, diz Oliveira.

Inovação tecnológica aumenta eficiência em células a combustível

O químico Marcelo Carmo, do IPT, desenvolveu em seu doutorado um estudo de materiais poliméricos que auxiliam a troca de prótons dentro da célula a combustível, aumentando a eficiência do processo eletroquímico em aproximadamente 60%.

O químico Marcelo Carmo, do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) do Estado de São Paulo, desenvolveu em seu doutorado um estudo de materiais poliméricos que auxiliam a troca de prótons dentro da célula a combustível, aumentando a eficiência do processo eletroquímico em aproximadamente 60%. Os polímeros são macromoléculas formadas pela união de substâncias simples, que formam diferentes materiais – no caso desta pesquisa, diversos tipos de plástico. E a célula a combustível é uma tecnologia que utiliza o hidrogênio e o oxigênio para gerar eletricidade, ou seja, uma espécie de bateria elétrica. Ela é vista como um possível futuro das baterias de celulares, notebooks, mp3 players, entre outras aplicações.

Por serem alimentadas com um combustível externo, as células a combustível, ao contrário das pilhas e baterias convencionais, têm autonomia e potência muito maiores. Além disto, esta é uma tecnologia mais limpa, pois não descarta metais pesados, mas simplesmente água, se o combustível for hidrogênio e oxigênio; ou água e CO2, se alimentada com metanol e oxigênio. Por isso, atualmente existe muita pesquisa em torno desta nova opção tecnológica. Em parceria do IPT e do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), a partir do estudo de Carmo, pesquisadores inseriram cadeias poliméricas condutoras de prótons em uma superfície de carbono que contém nanopartículas de um metal nobre (platina e/ou rutênio), o catalisador (ou facilitador) da reação.

“As pesquisas procuram focar em pontos distintos do sistema e entender como alterações em cada um deles alteram a eficiência do mesmo. No nosso caso, procuramos facilitar a troca protônica [ou seja, de prótons], uma das variáveis do sistema”, conta Carmo, autor da tese de doutorado que resultou nas inovações. A célula a combustível do tipo PEM (do inglês Próton Exchange Membrane) utiliza uma membrana polimérica condutora de prótons. Em cada lado, é acoplado um eletrodo, condutor através do qual se fornece ou se retira corrente elétrica de um sistema, onde ocorrem as reações. O sistema é fechado com as placas de grafite (carbono) que atuam como distribuidores dos combustíveis reagentes e como coletores da corrente elétrica produzida pelas reações eletroquímicas. Por fim, o sistema é ligado eletricamente a um dispositivo externo, fechando o circuito elétrico.

“Numa bateria ou pilha comum, o eletrólito [condutor elétrico] é uma solução líquida, enquanto na célula a combustível do tipo PEM, ele é um polímero, uma ‘folha de plástico’, que quando hidratado, só conduz os prótons. A membrana é um isolante, para que os eletrodos não se encostem e o sistema entre em curto, por isso ela só deve permitir a troca de prótons. A ativação da superfície do carbono, suporte do catalisador, com as cadeias poliméricas, facilita exatamente esse deslocamento dos prótons, devido às suas propriedades condutoras de prótons”, explica o pesquisador.

A troca protônica é um dos pontos chave do sistema. Os prótons produzidos na superfície do catalisador precisam ser eficientemente conduzidos até a membrana. Quanto mais rápido eles completarem esse trajeto, mais espaço livre haverá para que novas reações aconteçam no catalisador, resultando em maior rendimento. Os prótons, que ficam ligados à platina, precisam se deslocar ou serem conduzidos para o outro lado da célula, a fim de participar de uma segunda reação, com o oxigênio, para dar continuidade ao processo de funcionamento da célula. Como produto final, obtém-se água e calor (no caso da utilização de hidrogênio e oxigênio) e água, dióxido de carbono e calor (no caso de metanol e oxigênio).

Marcelo Carmo acredita que o primeiro nicho de mercado que as células a combustível irão atingir serão o de dispositivos portáteis, como laptops, mp3 players e celulares, pois o custo de uma bateria convencional e o de uma célula são semelhantes. E esta última tem outras vantagens, como a potência e a durabilidade da carga que são muito maiores. Os grandes fabricantes já pesquisam a tecnologia, especialmente pelo fato de os aparelhos terem cada vez mais aplicativos, memória, displays coloridos, e o consumo de bateria ser muito maior. Existe, portanto, a demanda por sistemas mais eficientes.

Samsung, Toshiba, HP, entre outros, já possuem vários protótipos de aparelhos que funcionam usando células de combustível. O maior desafio para os fabricantes é a segurança, já que laptops, por exemplo, esquentam bastante e a célula a combustível contém metanol, o que gera risco de incêndio. Há também, uma busca por uma solução para o vapor de água, o produto final da reação eletroquímica. As empresas acreditam que em 2009 já existam no mercado aparelhos com a tecnologia. A Samsung tem um modelo de computador portátil em estudo funcionando com células a combustível que pode funcionar por um mês sem ser recarregado.

O estudo brasileiro com polímeros gerou duas patentes nacionais e uma internacional recentemente depositada no Patent Cooperation Treaty (Tratado de Cooperação em Matéria de Patentes). Participaram desse trabalho o IPT (por meio do programa Novos Talentos), e o Ipen, em colaboração com o professor Marcelo Linardi, da Universidade de São Paulo, além da parceria com a Universidade Técnica de Darmstadt e o Instituto do Hidrogênio para Tecnologia Aplicada (ambos da Alemanha). O estudo integra o Programa de Investigação Tecnológica (PIT) da Fapesp e o “Pró-H2”, Programa Brasileiro de Células a Combustível, do Ministério de Ciência e Tecnologia.

Para saber mais: Célula Combustível (em AmbienteBrasil)