Elas se parecem com minhocas, têm tentáculos na cabeça como caramujos e se chamam cobras-cegas. Conhecidas também como cecílias (do latim cecus, que quer dizer cego), são na verdade anfíbios, parentes dos sapos. De hábitos fossórios (subterrâneos) e por isso pouco conhecidos, esses animais ocultam surpresas. Uma equipe internacional que inclui os pesquisadores brasileiros Marta Antoniazzi e Carlos Jared, do Instituto Butantan, descreveu na revista científica Nature (440, 13 de abril) uma forma de cuidado parental inédita: a pele alterada das mães serve de alimento para seus filhotes recém-nascidos. “Não se conhecia nada parecido na classe Amphibia”, diz Célio Haddad, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Rio Claro.
O artigo trata de uma cecília africana, a espécie Boulengerula taitanus. Porém, a semente inicial foi a observação da espécie brasileira Siphonops annulatus, por Carlos Jared e colegas em meados de 1993, durante trabalho de campo na Mata Atlântica do sul da Bahia. A equipe brasileira notou que durante o cuidado parental as fêmeas, que em geral são de cor chumbo-escuro brilhante, se tornavam esbranquiçadas e fosca2019s. Como os pesquisadores já haviam observado que os filhotes ficam sempre perto da mãe, sua primeira suposição foi de que elas secretavam alguma substância cujo odor atrairia sua prole. Não era um chute à toa: o palpite vinha do estudo de outro animal, a anfisbena ou cobra-de-duas-cabeças, que apesar da semelhança com as cecílias é na verdade um réptil. Jared já tinha demonstrado que as anfisbenas se comunicam por meio de secreções odoríferas.
Para conferir a hipótese, a equipe pôs filhotes longe de suas mães em grandes caixas cheias de terra e matéria orgânica. “Mesmo se deslocando no meio subterrâneo, rapidamente voltavam ao aconchego da mãe enrodilhada”, conta Jared. Mas a observação não ficou retida no Instituto Butantan. O pesquisador comentou o achado com o colega Mark Wilkinson, no Museu de História Natural de Londres, Inglaterra. A novidade atravessou continentes, até encontrar-se com uma observação feita por Ronald Nussbaum, da universidade de Michigan nos Estados Unidos. Ele vira, em uma cecília sul-americana recém nascida, dentes inesperados.
Cuidado parental As cecílias são diversas em sua forma de se reproduzir. Algumas põem ovos (ovíparas), dos quais fêmeas de certas espécies tomam conta até a eclosão. Em outras os filhotes se desenvolvem dentro da mãe (vivíparas), e com dentículos especializados raspam uma secreção nutritiva produzida pela parede interna do oviduto (canal por onde passam os ovos). As espécies ovíparas dispõem de nutrientes dentro do ovo, e não têm os tais dentes raspadores. Daí a surpresa de Nussbaum ao ver dentes em cecílias recém saídas do ovo. Ficou intrigado até que soube das observações dos brasileiros, e as peças se encaixaram.
Os pesquisadores então se dedicaram a observar o comportamento de filhotes e mães em cativeiro, e a analisar a pele destas. O comportamento marcante relatado no artigo da Nature foi observado oito vezes entre 21 fêmeas com filhotes mantidas em cativeiro. O especialista em anfíbios Célio Haddad diz que a escassez de eventos observados não põe em dúvida a descoberta. Ele já manteve cecílias em terrários com lados de vidro, e diz que só via os animais quando saíam para buscar comida. Jared explica como fazer para observar cecílias: pôr metades de coco raspadas na superfície do terrário. Os animais se instalam debaixo desses abrigos, que podem ser erguidos no escuro, cuidadosamente, para pequenos flagrantes de intimidade. De fato, as observações filmadas mostram sem sombra de dúvida que filhotes se alimentam da pele da mãe.
A pele das cecílias sofre modificações importantes durante o período de cuidado parental. Além da diferença na coloração visível a olho nu, fatias examinadas ao microscópio mostram mudanças celulares importantes. A camada externa da pele das fêmeas com filhotes chega a dobrar em espessura, devido ao alongamento das células que ficam cheias de vesículas. Essa epiderme é rica em lipídios, como o leite produzido por mães mamíferas.
A descoberta de alterações tão drásticas, tanto em mães como em filhotes, mostra o pouco que se sabe sobre as cecílias. As observações em espécies brasileiras não foram ainda publicadas. Mas Jared adianta que a “nova” forma de cuidado parental já foi observada em duas espécies brasileiras, Siphonops annulatus, da Mata Atlântica, e S. paulensis, típica de cerrado e caatinga.
No Brasil são conhecidas cerca de 30 espécies de cecília, das quais cerca de dez estão no gênero Siphonops. O próprio pesquisador brasileiro está descrevendo uma espécie nova, do sul da Bahia. Resta muito por descobrir sobre esses animais, e somente o grupo do Butantan estuda sua biologia e ecologia.