A Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos da Unesco, de 2005, diz que “a identidade de um indivíduo inclui dimensões biológicas, psicológicas, sociais, culturais e espirituais”. Baseado nessa idéia, o grupo de Bioética e Ética Médica do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp está coordenando uma série de encontros sobre bioética e espiritualidade. As palestras têm como proposta ampliar a divulgação da bioética a todos os interessados, de profissionais de saúde a pacientes.
No último censo demográfico do IBGE, 92,74% dos entrevistados declararam-se religiosos. “A religiosidade é, sem dúvida, um componente muito forte, senão o mais forte, na formação das convicções morais não só das pessoas, mas de toda a nossa cultura”, afirma Venâncio Pereira Dantas Filho, médico neurocirurgião, diretor clínico e presidente do Comitê de Bioética do Hospital das Clínicas (HC) da Unicamp. Para ele, o tema “espiritualidade” envolve desde as concepções e convicções religiosas relacionadas com a vida, a doença e a morte, bem como os rituais associados, até a visão que valoriza a integralidade da pessoa, incluindo seus aspectos biológicos, psicológicos, sociais e espirituais. “Essa visão estaria muito mais adequada para responder às novas expectativas dos pacientes e familiares que procuram os médicos”, diz.
Como a doença fragiliza e evoca a possibilidade da morte, a busca de um sentido para a situação favorece e exacerba a manifestação da espiritualidade na maioria das pessoas. “Infelizmente, a maioria dos médicos desta nossa geração não foi preparada para lidar com os aspectos espirituais e religiosos dos seus pacientes, o que consolida e confirma uma visão parcial de ser humano ensinada tradicionalmente nas faculdades”, lamenta.
Segundo os especialistas, de uma maneira geral as pessoas interpretam todos os acontecimentos de sua vida sob uma visão espiritual e conhecer e respeitar esta interpretação é de grande ajuda para o doente e para o profissional que o assiste. Por isso, assistir espiritualmente bem ao paciente é de grande contribuição para sua recuperação. “O paciente que está espiritualmente bem, é menos sujeito a depressão e a dor, coopera com o tratamento e tem mais ânimo”, acredita o pastor evangélico João Sílvio Rocha, do Serviço de Capelania do HC da Unicamp.
Apesar de ser um assunto polêmico, muitos pesquisadores já apontam um papel positivo da espiritualidade e religiosidade em doenças coronarianas, hipertensão arterial, ansiedade, depressão, função imune e mortalidade em geral. Existem evidências que pessoas com algum tipo de espiritualidade apresentem menor incidência dessas doenças e vivam mais, recuperem-se mais rapidamente quando doentes e apresentem menos complicações durante o tratamento.
Esses possíveis benefícios da espiritualidade sobre a saúde podem estar associados desde a reações fisiológicas mais simples, como a redução da tensão muscular, da freqüência cardíaca e da pressão arterial, como também reações mais complexas como maior capacidade para o controle da dor e do sofrimento e a diminuição da reações ao estresse, levando a um maior equilíbrio das respostas imunologicamente moduladas. Podem ser considerados ainda os possíveis benefícios da expansão dos vínculos sociais relacionados à religiosidade.
“Entende-se hoje cada vez mais que os problemas existenciais, que têm como pano de fundo a questão do sentido da vida, portanto, questões também de ordem espiritual e religiosa, estão associados senão com todas, pelo menos com a grande maioria das doenças psicossomáticas que acometem as pessoas em todo o mundo”, afirma Dantas Filho. Aqueles que reconhecem a espiritualidade e a oração como um esforço humano para auxiliar o tratamento, sugerem que as evidências dos estudos científicos recentes sobre o assunto são interessantes o suficiente para justificar novas pesquisas. “Os efeitos da espiritualidade sobre a saúde podem envolver mecanismos fisiológicos úteis além dos nossos conhecimentos atuais que, com o tempo, possam vir a ser entendidos”, acredita.
Muitas proposições terapêuticas para o tratamento das doenças já incluem a espiritualidade, particularmente na forma de meditação e oração, e também como tratamento adjuvante ou alternativo para, pelo menos, diminuir a ansiedade, aliviar preocupações, dar conforto e motivação, tanto a nível domiciliar quanto hospitalar. “Conhecer melhor as convicções das pessoas, inclusive as de cunho religioso, fornecem mais recursos para lidarmos com novas situações que deparamos freqüentemente e podem se tornar bastante conflituosas”, completa o médico da Unicamp.
Oferecer compreensão, compaixão e esperança são as bases das profissões da saúde e não são necessariamente dependentes da fé do profissional. “Devemos, antes de tudo, saber reconhecer, coordenar e bem orientar as necessidades espirituais dos pacientes sob nossos cuidados. Essa orientação, quando bem realizada, deve proporcionar maior alívio das angústias e reforço das esperanças do paciente, colaborando, assim, para um melhor resultado final do tratamento”, conclui.
Um caso relatado pelo pastor João mostra como a assistência religiosa pode ajudar num tratamento. “Uma paciente recebeu um transplante de rim bem sucedido mas, passado algum tempo, ela ouviu ou interpretou em sua igreja que o cristão que tem fé não precisa tomar remédio. Por conta disso, ela parou de tomar o medicamento contra rejeição do órgão. Logo ela teve problemas de rejeição, voltou ao hospital e não queria se medicar. Fomos chamados para conversar com ela e mostramos que biblicamente não há incoerência entre ter fé e tomar remédios. Ela ficou convencida e voltou ao tratamento”, relata.
Os encontros sobre temas de bioética acontecem na última segunda-feira de cada mês, às 19 horas, no Salão Nobre da FCM. No dia 29 de outubro, a discussão é sobre a “Assistência espiritual aos enfermos”, com a presença do padre Norberto Bonfim e do pastor João Sílvio Rocha, ambos do Serviço de Capelania HC da Unicamp. A última reunião do ano acontece no dia 26 de novembro, com o tema “Espiritualidade e ciência”. Os encontros são gratuitos e abertos a todos os interessados.