A pesca dos botos amazônicos, prática proibida por lei federal desde 1987, intensificou-se nos últimos anos. Com o escasseamento do mandi, peixe muito apreciado na Colômbia, os pescadores brasileiros estão recorrendo à carne de boto como isca na pesca da piracatinga, peixe amazônico com sabor semelhante ao mandi, para comercalização no país vizinho.
A fim de reverter o quadro de caça predatória ao cetáceo, foi anunciado no começo de março o Plano de Ação Emergencial para Redução e Interrupção da Caça de Botos-da-Amazônia. O plano será realizado por representantes do Instituto Chico Mendes, do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), da Secretaria de Meio Ambiente do Amazonas e de instituições ambientais colombianas. Ele inclui a identificação e fiscalização das áreas críticas, além de ações de educação ambiental.
Um dos fatores determinantes para a preservação dos botos na Amazônia é o entendimento, por parte das populações locais, da importância e necessidade de proteção da espécie. Detectar se alunos ribeirinhos partilham desse entendimento foi um dos objetivos da dissertação de mestrado defendida em março na Universidade Federal do Pará (UFPA) pela bióloga Angélica Lúcia Figueiredo Rodrigues. “Procurei resgatar e compreender os conhecimentos, práticas e crenças relacionadas aos botos entre estudantes ribeirinhos de dois municípios do estado do Pará: Abaetetuba e Soure”, explica Rodrigues.
Questionados sobre qual animal consideram mais importante na fauna local, 17% dos estudantes que participaram da pesquisa apontaram o boto, que perdeu apenas para os peixes, citados por 43% dos entrevistados. Para a pesquisadora, a preferência pelos peixes se deve à sua importância enquanto recurso alimentar nas comunidades de origem dos alunos, que vivem principalmente da pesca.
Entre os sentimentos expressados pelos estudantes em relação ao boto estão alegria, admiração, raiva, surpresa e indiferença. Contudo, o sentimento predominante foi medo, relatado em 57% dos casos. “Nós atribuímos esse resultado ao efeito negativo da lenda que envolve os botos na região amazônica e ao fato de a espécie ser vista como uma competidora na disputa por peixes”, diz Rodrigues.
Apesar do temor em relação aos botos, 67% dos entrevistados acreditam na importância de sua preservação, dado que surpreendeu a pesquisadora. “Acredito que, em casa e mesmo na escola, os alunos começam a aprender e utilizar conceitos de preservação e respeito ao meio ambiente”, avalia. Segundo ela, a principal justificativa apresentada pelos estudantes favoráveis à conservação da espécie é que “eles fazem parte da natureza”. Já a parcela contrária não justificou tal opinião. “Os resultados demonstram claramente que as lendas podem representar ameaça para a manutenção dos botos, mas que ainda existe esperança de mudarmos certas concepções, atraindo a atenção das crianças para a importância dos botos na natureza”, pondera.
Lendas
Rodrigues, que participa do Grupo de Estudos de Mamíferos Aquáticos da Amazônia (Gemam) da UFPA, recebeu bolsa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e teve suas viagens de campo custeadas pela Petrobras através do projeto Piatam Oceano. Ela utilizou redações e questionários como ferramentas para investigar o conhecimento sobre botos de 80 alunos de quinta e sexta séries do ensino fundamental, com idades entre 11 e 14 anos.
“Escolhi desenvolver a pesquisa com estudantes ribeirinhos filhos de pescadores por se tratar de um público que vivencia de perto o ofício da pesca, mas que também recebe influência constante da educação formal”, explica. Entre os participantes da pesquisa, 68% disseram ver botos alguns dias por semana, geralmente em praias, rios e igarapés. O boto preto apareceu mais vezes nas verbalizações dos alunos de Abaetetuba (32%), enquanto que em Soure os mais citados foram os botos malhado e rosa (37%).
A análise das redações mostra que o conhecimento adquirido pelos alunos sobre os botos é conciso e coerente com a literatura científica quanto ao comportamento ecológico da espécie. “As discussões em volta da conservação dos botos devem levar em conta esses conhecimentos, afinal essas pessoas estão em contato freqüente com os animais e detém informações que não podem ser desperdiçadas”, enfatiza.
Segundo a bióloga, alusões às inúmeras lendas sobre botos na Amazônia também foram freqüentes nas redações. “Todas elas representam o animal _como um ente sobrenatural, que tem a capacidade de transformar-se, tomando uma forma humana para encantar as mulheres”, revela. Essas lendas são extremamente relevantes na vida dos ribeirinhos. “Por isso, antes de se pensar em contar com a ajuda das comunidades na preservação da fauna aquática, é preciso levar-se em conta o imaginário das pessoas em relação a esses animais”, pontua Rodrigues. Ela ressalta que a idéia da pesquisa não foi banir esse tipo de cultura, mas estudar uma maneira de respeitar essas manifestações sem comprometer a sobrevivência dos botos.