A campanha de prevenção à Aids do carnaval deste ano, com lançamento previsto para dia 13, terá como foco a população feminina com mais de cinqüenta anos. Segundo o site do Programa Nacional de DST/Aids, a campanha é uma resposta à maior tendência de crescimento da epidemia neste grupo, uma vez que o número de mulheres infectadas dobrou nos últimos dez anos. O principal argumento utilizado é que a mulher nessa idade tem pouco poder de decisão no relacionamento. Dessa forma, a campanha visará incentivar a mulher a conversar sobre a sua sexualidade e sobre o uso do preservativo com o seu parceiro.
Estudos publicados recentemente indicam que as relações de poder em casais, marcadas por uma dominação masculina, ainda estão presentes no campo da sexualidade e interferem no diálogo sobre o uso do preservativo. Tal fato afetaria a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis (DST), como a Aids, principalmente em mulheres. Os artigos questionam, a partir de suas conclusões, o enfoque vigente das campanhas de prevenção de DST/Aids em questões técnicas e individuais, que reproduzem representações homogêneas da masculinidade e feminilidade. Os trabalhos apontam para a necessidade de consideração de outros fatores, como as questões de gênero, identidade e de papéis sociais, na elaboração deste tipo de campanha.
A partir da década de 1970, com a emancipação feminina, as mulheres assumiram papéis antes delegados somente aos homens e começaram a participar de discussões e tomadas de decisões tanto na esfera pública quanto na doméstica. Elas passaram a votar, a contribuir na renda familiar. Além disso, temas anteriormente considerados tabu, como o aborto, ganharam espaço na pauta de discussões. Apesar de todas estas mudanças nas relações de poder entre homens e mulheres, o campo da sexualidade ainda seria o lugar de manutenção de relações hierárquicas. Isto é o que indica um artigo recentemente publicado na revista Ciência e Saúde Coletiva, pelos pesquisadores Fernanda Torres de Carvalho e César Augusto Piccinini, do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). No trabalho, os autores fazem uma análise histórica do papel da mulher na sociedade ao longo do processo civilizador e no contexto da epidemia de HIV/Aids. E chegam à conclusão de que as questões de gênero ainda regem as relações entre homens e mulheres e podem ser um grande inimigo na prevenção das DST, principalmente da Aids.
Apesar de a epidemia de HIV ser muito recente, ela parece trazer à tona questões de gênero bastante antigas. Segundo a análise histórica feita no trabalho, no início do processo civilizador, o feminino era associado ao nascimento, à fertilidade e à vida, e por isso era divinizado e cultuado. Mas com a transição para a hegemonia do masculino passou-se a valorizar mais a figura do homem e as atividades a ele relacionadas. Neste contexto, e com a repressão social e religiosa imposta sobre a mulher ao longo da história, a figura feminina foi dissociada em duas: a figura da mãe, cujo corpo era destinado à procriação; e a figura da prostituta, mulher devassa e promíscua.
Segundo o estudo, mesmo após todo movimento social de mudanças nas questões de gênero, as mulheres ainda não teriam modificado o seu comportamento e a sua vivência com a sexualidade, e continuam tentando fugir da imagem da mulher promíscua. A relação de poder existente nos relacionamentos entre mulheres e homens seria responsável pela dificuldade que algumas mulheres apresentam, ainda hoje, em negociar o uso do preservativo com os seus parceiros. Para elas, o casamento e a fidelidade atuariam como um fator de proteção. Assim, o risco de infecção estaria restrito às mulheres promíscuas, como se este risco fosse moral e não comportamental.
As mulheres representam, atualmente, uma população com altos índices de infecção pelo HIV. A proporção de casos entre homens e mulheres, que era de 7/1 em 1988, passou para 2/1 em dez anos. “A negação dos riscos [de infecção pelo HIV] vem se mostrando como um fator que dificulta muito a prevenção da infecção pelo HIV/Aids e vem levando muitas mulheres a se infectarem”, afirmam Carvalho e Piccinini.
Outro estudo publicado nesta mesma revista, realizado por Valéria Silvana Faganello Madureira, da Universidade do Contestado, e por Mercedes Trentini, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), também aponta nessa mesma direção. Segundo as autoras, que analisaram o discurso de dez homens catarinenses que viviam relações afetivo-sexuais duradouras, as relações de gênero representam um papel central no uso de preservativo. Também para os homens, a sugestão do uso do preservativo levaria a uma desconfiança da parceira em relação a sua fidelidade; e o pacto de fidelidade entre o casal seria suficiente para garantir um risco de infecção praticamente nulo. O uso do preservativo, neste contexto, aparece principalmente associado à prevenção da gravidez e ao planejamento familiar, tanto em relações conjugais como extraconjugais. A prevenção de DST fica em segundo plano.