A transição epidemiológica passou a ser um termo recorrente entre cientistas brasileiros para abordar a diminuição da mortalidade por doenças infecto-parasitárias no Brasil, em contraposição ao aumento de doenças crônico-degenerativas, tais como, doenças cardíacas e mal de Alzheimer. Para alguns pesquisadores, o fenômeno está diretamente associado ao envelhecimento da população brasileira. A socióloga Ana Paula Belon, do departamento de demografia da Unicamp, fez uma pesquisa sobre o tema e um levantamento sobre a ocorrência de neoplasias em idosos, mais especificamente sobre a evolução da mortalidade por câncer de colo de útero, de mama feminina e de próstata, no estado de São Paulo.
A pesquisadora verificou um aumento da mortalidade e da incidência dessas neoplasias entre a população com mais de 60 anos, no período entre 1980 e 2000. Segundo Belon, as explicações para esse fenômeno são múltiplas, mas pode-se salientar que o envelhecimento da população é uma das principais causas. A diminuição da mortalidade infantil associada com o aumento da expectativa de vida – possibilitada pela melhora da qualidade de vida e pelos avanços da medicina – faz com que as pessoas vivam mais tempo.
De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2050, um quinto da população mundial será idosa. Para o Brasil, a estimativa prevê que o número de idosos pode passar dos 30 milhões nas próximas décadas, o dobro do contingente atual. Uma outra característica desse quadro é o incremento dos grupos etários mais velhos, principalmente os maiores de 80 anos, ou seja, além de aumentar, a população também passou a ter maior longevidade.
A essa característica populacional está associado o aumento das doenças crônico-degenerativas como as doenças cardiovasculares, as do aparelho respiratório e neoplasias. De acordo com Belon, “existe uma relação entre o envelhecimento da população e o aumento da incidência de câncer, pois as pessoas que vivem mais, ficam mais tempo expostas aos agentes externos causadores da doença”. Ela ressalta que a incidência e a mortalidade por câncer cresceram porque o número de idosos aumentou, o que não quer dizer que a probabilidade de uma pessoa ter câncer seja maior agora do que no passado.
Dos três tipos de neoplasias analisadas, o que mais chamou a atenção foi o câncer de próstata. “Houve um aumento significativo da mortalidade por esse tipo de câncer, que chega, entre os maiores de 90 anos de idade, a cerca de 800 mortes por 100 mil habitantes”, afirma Belon. A situação é alarmante porque, em grande parte dos casos, a doença só é descoberta em estágios avançados, reduzindo as possibilidades de cura.
Já em relação ao câncer de mama, a situação é um pouco melhor, mas ainda assim preocupante na opinião da pesquisadora. De acordo com ela, existem falhas na prevenção e, assim como no câncer de próstata, muitas vezes o tratamento só tem início quando a doença já está num estágio avançado. “Além disso, existem somente 600 aparelhos que fazem mamografia no estado de São Paulo, o que é muito pouco”, afirma.
A mortalidade por câncer de colo de útero entre idosas é a menor dentre os três tipo de neoplasias analisadas. “Tanto o governo como os hospitais desenvolveram meios para detectar e tratar a doença. Apesar disso, ainda existe muita coisa a ser feita”, diz Belon.
Dados Imprecisos
Durante a pesquisa, Belon deparou-se com outra questão: a falta de qualidade dos dados disponíveis, “os dados são melhores nas regiões de Campinas, Osasco, São Paulo e Ribeirão Preto, exatamente nos locais onde houve o maior aumento da incidência das neoplasias. Já nas regiões de Registro e Assis, os dados são deficitários”, afirma. Belon acredita que o cuidado em registrar as causas da morte dos idosos é menor do que o dispensado para casos de jovens e crianças. “Em muitos lugares se diz que o paciente ’morreu de velhice’ e isso esconde a real causa da morte”, diz.
De acordo com Belon, nos lugares onde os dados são deficitários, a mortalidade por essas doenças é menor e isso muitas vezes não reflete o que realmente acontece. A ausência de dados pode indicar que os casos de câncer são mais numerosos do que os registrados nesses locais.
Transição Epidemiológica
Segundo a pesquisadora, apesar de o Brasil estar passando por essa transição epidemiológica, as doenças infecto-parasitárias ainda são um grande problema para o país. A pesquisa não traz dados sobre esse tipo de doença, mas Belon acredita que as doenças infecciosas estão presentes no mundo todo, a exemplo da gripe aviária. Além disso, existem diversas doenças negligenciadas, tais como malária, leishmaniose e doença de Chagas.
As doenças infecto-parasitárias também são conhecidas como doenças tropicais por terem maior incidência em países em desenvolvimento, nos trópicos. Do ponto de vista demográfico, esses países são em sua maioria jovens. Já as doenças crônico-degenerativas têm maior incidência em países desenvolvidos, onde o índice da população idosa é alto.
As doenças crônicas, em geral, possuem um tratamento caro e demorado. Em muitos casos, não existe cura, somente um tratamento para amenizar os sintomas da doença. Já a maioria das doenças infecto-parasitárias tem cura com algumas doses de medicamento e isso faz com que a indústria farmacêutica invista menos dinheiro em pesquisa para o tratamento dessas doenças, uma vez que o lucro gerado é menor.
Assim, apesar do quadro descrito pela pesquisadora indicar que o Brasil vive uma transição epidemiológica, aproximando-se das características populacionais de países desenvolvidos, o país também possui inúmeros casos de doenças tropicais. A situação coloca o Brasil numa posição especial, em que a atenção para ambos os tipos de doenças deve ser privilegiada pela saúde pública. A pesquisa de Ana Paula Belon foi apresentada como dissertação de mestrado em fevereiro de 2006, na Universidade Estadual de Campinas.