O atendimento a portadores de HIV/Aids no mundo está longe de satisfatório. As condições são especialmente deficientes nos países menos desenvolvidos, sobretudo no continente africano. Um relatório publicado pelo Centro de Pesquisas em Saúde do Departamento para Desenvolvimento Internacional do Governo Britânico (DFID, na sigla em inglês) defende a utilização de sistemas de franquia para aumentar a cobertura do tratamento da Aids. A principal vantagem do sistema, segundo o autor do documento Roger England, é a ampliação do número de pacientes atendidos com padrões elevados de qualidade e preços controlados, graças à participação do capital privado.
Em janeiro de 2005, após estimar que seis milhões de pessoas portadoras do vírus HIV no mundo necessitavam urgentemente de terapia antiretroviral, a Organização Mundial de Saúde (OMS) fixou a meta de fornecer tratamento para três milhões de soropositivos nos países pobres ou em desenvolvimento até o final daquele ano. De fato, constatou-se o atendimento de apenas 1,3 milhão. Para agravar o quadro, estudos realizados por England sugerem que a estimativa da ONU está bem abaixo da realidade e que atualmente o número de pessoas que precisam de tratamento esteja em torno de 12 milhões. Por isso, encontrar um sistema para o tratamento da Aids capaz de atingir mais pessoas é tão desejado.
Pode soar estranho falar em franquias, conhecidas nas cadeias de refeições e cosméticos, para o tratamento da Aids. Mas O trabalho de England procura esclarecer seu funcionamento, custos e vantagens para os franqueados, dando exemplos de sucesso de franquias em saúde como no Paquistão, Quênia, Filipinas, México, Zâmbia, Índia, Nicarágua, Nepal, Madagascar, Egito e Etiópia. A franquia em saúde segue o princípio básico de qualquer franquia, isto é, visa aumentar a oferta de determinado produto ou serviço por meio da contratação de varejistas independentes em diferentes localidades. De acordo com o documento, “o sucesso decorre das vantagens da identificação de uma marca, das economias de escala e do equilíbrio de incentivos econômicos entre franqueador e franqueado”.
Nesse estudo, England também admite que há especificidades locais a serem consideradas e que a prática de franquias em saúde ainda é recente. Mas elas poderiam ser alternativas para a oferta de tratamentos antiretrovirais aos pacientes não atendidos por outros meios, incluindo os serviços governamentais. Isso porque há países onde as restrições no orçamento do governo impedem que a população tenha acesso universal gratuito ao tratamento. “No Brasil, as franquias não se aplicariam porque o sistema de distribuição gratuita tem sido satisfatório”, diz a pesquisadora Margareth Crisóstomo Portela, do Departamento de Administração e Planejamento em Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca da Fiocruz.
Brasil: avanço com obstáculos
Mesmo contra recomendações e advertências do Banco Mundial, o Brasil adotou em 1996 uma política de distribuição de medicamentos contra a Aids, via Sistema Único de Saúde (SUS), para todas as pessoas infectadas pelo HIV. Naquele ano foi aprovada uma legislação garantindo o acesso universal aos medicamentos e, desde então, o programa nacional de DST/Aids reúne periodicamente especialistas para estabelecer parâmetros de tratamento e acompanhamento de pessoas com Aids. O tratamento inclui a distribuição gratuita de medicamentos, o monitoramento das respostas dos pacientes à medicação e a realização de exames, como a contagem de linfócitos CD4 (células do sistema imune com papel chave no sistema imunológico) e o teste de carga viral (que estima a quantidade de vírus circulando no organismo).
O elevado preço dos medicamentos protegidos por patentes levou o governo brasileiro a defender a supremacia das necessidades emergenciais da população sobre os direitos de propriedade intelectual. Em 2001, na rodada de negociações da Organização Mundial do Comércio, em Doha, Qatar, o Brasil manifestou sua posição e conseguiu significativas reduções de preço sem que a quebra das patentes tenha sido de fato efetivada até o momento. Em artigo publicado na ComCiência, a consultora em propriedade intelectual Maria Fernanda Macedo prevê um “sério abalo na sobrevivência do Programa Nacional DST/Aids se os preços dos remédios anti-retrovirais patenteados, praticados no Brasil, se mantiverem nos atuais níveis”.
A produção de medicamentos genéricos, que são química e farmacologicamente idênticos aos de marca, mas não embutem os gastos com propaganda e marketing, permitiu a queda dos preços. Dos quinze medicamentos atualmente distribuídos pelo SUS, oito são produzidos nacionalmente, a preços reduzidos. De acordo com Mariângela Simão, diretora do Programa Nacional de DST e Aids (www.aids.gov.br), no contexto para garantir o acesso à prevenção e ao tratamento, um dos caminhos para a sustentabilidade financeira é a produção nacional de insumos e medicamentos. “Do ponto de vista orçamentário, 80% da nossa receita para compra de medicamentos são comprometidos com drogas importadas e somente 20% com as produzidas por laboratórios nacionais, públicos e privados”, diz.
O Brasil se tornou referência internacional na disponibilização do tratamento para a Aids, mas alguns desafios ainda persistem. Além da questão das patentes dos medicamentos, o quadro econômico desfavorável pesa permanentemente sobre a sustentabilidade dos programas sociais governamentais, questionada por Portela. “Se o Programa Nacional DST/Aids não puder ser mantido, novas alternativas terão de ser pensadas”, diz a pesquisadora. Talvez a franquia esteja entre elas.