Após quase quarenta anos desde sua primeira publicação, A Origem dos Modos à Mesa – o terceiro volume da tetralogia Mitológicas de Claude Lévi-Strauss – ganha uma versão em português, traduzida pela antropóloga brasileira Beatriz Perrone-Moisés. Apesar de Tristes Trópicos ser a obra mais difundida do autor, Mitológicas é considerada por muitos a obra da vida do antropólogo, que levou quase dez anos para concluí-la. O cru e o cozido, Do mel às cinzas, A origem dos modos à mesa e O homem nu são os quatro volumes da série que, por meio de mais de 800 mitos indígenas de todas as américas, propõe uma reflexão, dentre outras possibilidades, sobre a passagem da natureza para a cultura.
Para escrever a obra, Lévi-Strauss juntou às histórias dos mitos, que ele próprio reuniu em suas viagens, coletâneas de outros antropólogos e historiadores. “Isso já foi muito criticado, a meu ver sem muito fundamento”, pontua Otávio Calávia Saez, antropólogo da Universidade Federal de Santa Catarina.
De acordo com o pesquisador, o “contar” de Lévi-Strauss não se encontra em cada mito em particular, mas no encadeamento entre os mitos. “Há muita interpretação, é claro, mas não é ela que conduz a obra. O eixo está na capacidade de coordenar significativamente centenas de narrações independentes”, diz Sáez.
Nesse sentido, o que diferencia Mitológicas de outras obras do gênero é que não se trata de uma simples compilação de mitos, nem tampouco segue uma ordem classificatória predeterminada. Cada nova narração surge de um detalhe de outra, propondo uma nova perspectiva, como um caleidoscópio. Os mitos reunidos por Lévi-Strauss foram coletados, em sua maior parte, durante a década de 1930, quando esteve no Brasil, e a obra, escrita entre 1964 e 1974.
Apesar da distância de mais de trinta anos desde sua primeira publicação na França, Sáez acredita que esta não é uma obra datada e ainda há muito o que ser explorado nela. Segundo o pesquisador, é até preferível ler a obra agora do que na época em que foi lançada, quando o estruturalismo era a corrente teórica da moda. “Agora não é mais e Mitológicas pode ser lida de um modo menos preso a programas, como uma obra multidimensional e não como ilustração de uma teoria”, afirma.
A quantidade de histórias e o longo tempo de produção são indicativos, segundo Saez, de que o roteiro da obra não estava predeterminado. “De maneira geral, os elementos formalizantes (gráficos, tabelas, equações) que marcam O cru e o cozido, vão sendo diluídos e a coleção torna-se mais intuitiva e artesanal”. O pesquisador acredita que para Lévi-Strauss, o resultado de Mitológicas foi uma surpresa. “Quando se encontram, a milhares de quilômetros de distância, mitos que parecem anagramas uns dos outros, acho que o próprio autor surpreende-se com a prestidigitação, ou com o poder heurístico da máquina que ele desenhou”.
Lévi-Strauss não fornece, no entanto, nenhuma definição fechada em sua obra, apenas mostra como funciona o pensamento humano a partir de diferenças e semelhanças, e de modo geral, como os mitos conversam entre si. “O livro não traz respostas prontas. Ele convida para entrar no pensamento indígena”, comenta Renato Sztutman, antropólogo da USP. As Mitológicas encontram-se povoadas de reflexões indígenas sobre a ordem do mundo, a condição humana e o sentido da vida social, mas o próprio autor adverte que é preciso antes pensar nas mediações entre os mitos e as sociedades que os criaram para poder chegar a qualquer conclusão.
Antes de Lévi-Strauss, os mitos eram vistos como histórias irracionais das quais, com algum esforço poderia ser apreendido algum dado histórico ou sociológico; ou como mensagens sagradas, advindas de uma antigüidade remota. “Os mitos só valiam pelo seu hipotético conteúdo, e era importante saber qual versão seria a mais fiel, a mais antiga. A partir de Strauss, a forma de criação, transmissão e transformação do mito passa a ser o mais importante. A capacidade humana de mitificar é o que mais importa”, explica Saez.
Versão Brasileira
O volume recém traduzido A origem dos modos à mesa é provavelmente o menos conhecido e o mais complexo, porque é nele que ocorre a passagem dos mitos sul-americanos para os norte-americanos. Nesse volume, sobressaem os mitos que focalizam a temporalidade, os quais proporcionam análises sobre as relações entre o mito e a história e entre o mito e o romance. O livro trata os entornos da cozinha, que tem um lado natural e outro cultural, e vai da elaboração das receitas até as maneiras de se comportar à mesa. Para Renato Sztutman, os mitos sobre a cozinha e a etiqueta servem, antes de tudo, como metáforas para refletir sobre a passagem da natureza à cultura. “As metáforas são utilizadas para falar sobre moralidades, sobre a idéia de comportamento, e também sobre a importância da periodicidade, a distinção cultural entre o dia e a noite, por exemplo, para o mundo funcionar”, conta.
Na opinião Sáez, a publicação brasileira de Mitológicas tem algo de repatriação. Isso porque, os primeiros relatos da obra são mitos anotados originalmente em português que tratam de coisas para as quais existem palavras comuns no português do Brasil. Em geral, são termos derivados das línguas indígenas como timbó, jabuti, bicho-de-pé. “Em alguns momentos, as Mitológicas são menos ‘traduzidas’ que as Mythologiques”, ressalta.
A versão brasileira da coleção começou a ser publicada em 2004 pela editora Cosacnaify que, desde então, lança um volume por ano. A coleção será completada em 2007 com o lançamento de O homem nu. Toda a tetralogia foi traduzida por Perrone-Moisés, com exceção de Do mel às cinzas, traduzido por Carlos Eugênio Marcondes de Moura, sob a coordenação da antropóloga.