O tráfico ilegal de bens culturais está entre os crimes mais praticados no mundo. No Brasil, as ocorrências de furtos e roubos de obras do patrimônio histórico e cultural aumentaram nos últimos dois anos e incitam não apenas críticas, mas iniciativas para reduzir essas práticas. “É preciso reconhecer as deficiências da gestão das instituições de cultura e criar mecanismos eficientes de combate às ações criminosas contra os bens culturais”, afirma José do Nascimento Júnior, diretor do Departamento de Museus e Centros Culturais do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Em outubro, o Iphan abrirá um edital para financiar projetos de segurança nas instituições de cultura, em parceria com a Petrobrás, no valor de R$ 3 milhões.
Tradicionalmente, o alvo dos crimes são os objetos sacros ou religiosos, como imagens de santos, esculpidas ou pintadas, e toda ourivesaria e prataria dos objetos litúrgicos. Na atualidade, assiste-se também a roubos e furtos de quadros de pintura moderna e de objetos multicópias, como impressos, gravuras, fotografias, medalhas, moedas e armas. “No caso desses objetos, por não serem peças únicas, é difícil identificar de onde eles vieram, sem um atestado de procedência”, diz Paulo Knauss, professor do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense.
O estado do Rio de Janeiro lidera o ranking de crimes ao patrimônio público, com 53% do total de itens roubados em todo o país, segundo o Iphan. A grande incidência de casos levou os profissionais preocupados a organizarem, no último dia 12, o seminário “Gestão da segurança do patrimônio cultural” para discutir os crimes ao patrimônio público no Estado, no Arte Sesc. A lista de bens desaparecidos totaliza 538 objetos, para esse estado. Os casos emblemáticos foram os furtos de objetos do Arquivo Histórico Diplomático do Itamaraty, da Biblioteca Nacional, do Museu Nacional, da Cúria Metropolitana e do Arquivo Geral da Cidade, assim como os roubos do Museu da Cidade e do Museu da Chácara do Céu. A ação mais recente ocorreu em São Paulo, no início do mês, com o furto de quatro obras da Biblioteca Mário de Andrade.
Desde 1997, o Iphan, a Polícia Federal, a Interpol (organização internacional de polícia criminal) e o Conselho Internacional de Museus desenvolvem a campanha Luta Contra o Tráfico Ilícito de Bens Culturais, cujo objetivo é devolver aos lugares de origem as obras de arte furtadas ou desviadas de forma ilegal. De acordo com Nascimento Júnior, nos últimos dez anos, porém, foram recuperadas apenas 10% das 1.100 peças desaparecidas.
Críticas
Além do baixo índice de recuperação das obras subtraídas do patrimônio brasileiro, os criminosos raramente são punidos. “É rara a prisão dos criminosos”, lamenta o diretor, “e o mais importante não é punir o infrator direto, mas aquele que encomenda o serviço à distância”. Os ‘contratantes’ dos furtos, explica Nascimento Júnior, geralmente são colecionadores que se apropriam das obras para o próprio deleite e não para fins comerciais, já que é muito difícil comercializar obras declaradas desaparecidas.
A legislação é um dos alvos das críticas dos especialistas. Há hoje um projeto de lei (7.107/06) em tramitação no Senado que altera a Lei 9.605/98. “A Lei de 98 trata, sobretudo, dos crimes ambientais. A 7.101 irá tipificar novas modalidades de dano ao patrimônio cultural”, diz o diretor do Departamento de Museus e Centros Culturais. A pena prevista é de um a três anos de detenção e multa e, se o crime resultar na destruição dos bens, poderá ser aumentada de um terço à metade.
Paulo Knauss aponta o orçamento insuficiente para a Cultura no país como sendo outra deficiência. A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) recomenda a utilização de 1% da receita governamental para essa área, mas no Brasil, em qualquer instância (União, Estados ou Municípios), esse percentual está abaixo do recomendado. “O patrimônio cultural brasileiro tem sobrevivido graças à dedicação de abnegados, pois os governos não cumprem seu papel”, diz o professor. Conseqüentemente, além das frágeis condições de segurança, as instituições também enfrentam problemas de manutenção, como goteiras e infiltrações, que podem danificar as obras.
Recomendações e ações pró-ativas
De acordo com Knauss, é fundamental que se implantem políticas de salvaguardas e proteção ao patrimônio cultural, reconhecendo suas formas plurais (patrimônio histórico, artístico, documental, único excepcional, múltiplo etc.). “Essas políticas precisam ser complementadas por uma ação integrada dos órgãos responsáveis, independentemente da repartição administrativa, e das esferas municipal, estadual ou federal”, afirma. Além disso, o professor ressalta a necessidade de regras que disciplinem o mercado de bens culturais, valorizando os atores qualificados. “É preciso defender o caráter público do patrimônio, reconhecendo o papel de antiquários e colecionadores e superando a dicotomia privado-estatal”, defende.
Na visão de Nascimento Júnior, há três medidas fundamentais a serem tomadas: a realização de inventários detalhados, a digitalização dos acervos e a criação de delegacias especializadas para assuntos do patrimônio brasileiro. O Sistema Brasileiro de Museus, a Biblioteca Nacional e o Arquivo Nacional deverão integrar as instituições brasileiras. “O Comitê Gestor do Sistema Brasileiro de Museus encaminhou ao Congresso um projeto de lei que estabelece o estatuto dos museus, com regras para a sustentabilidade e segurança de todos os museus brasileiros. Acredito que até 2007 a lei esteja em vigor”, diz.