Faltavam seis minutos para acabar o jogo entre Real Madrid e Real Sociedad, no dia 12 de dezembro de 2004, na capital espanhola, quando o juiz interrompeu a partida. Havia uma ameaça de bomba no estádio e os jogadores saíram correndo para o vestiário. Houve tumulto na arquibancada, enquanto a polícia vasculhava o local. Nenhuma bomba foi encontrada. Apesar da ameaça ser falsa, os principais jornais do mundo noticiaram o fato.
Depois dos atentados de 11 de setembro, o terrorismo passou a ter presença constante na mídia e esse é exatamente o tema da pesquisa de Luciana Moretti Fernández, que focalizou a relação que entre a mídia e o terrorismo e a forma como os veículos de comunicação cobrem os atentados. A pesquisa de Fernández, intitulada “Hiperterrorismo e Mídia na Comunicação Política”, foi defendida como tese de mestrado na Escola de Comunicação e Artes da USP.
De acordo com a pesquisadora – que analisou notícias de três veículos brasileiros, as revistas Veja, Isto É e Carta Capital, entre 1999 e 2004 – os grupos terroristas aprenderam a se projetar na mídia e se tornaram hábeis em criar fatos que se transformam em notícia. Segundo ela, isso ocorre mesmo que o atentado não se realize, como no exemplo do estádio de futebol. A pesquisadora ressalta que a visibilidade criada através dos meios de comunicação é fundamental para o sucesso do ato terrorista, “a mídia é a infra-estrutura necessária para que as negociações ocorram com a visibilidade pública suficiente e os seus conteúdos passem a fazer parte das agendas públicas e, eventualmente, das agendas políticas”, argumenta ela. Em sua opinião, os diversos atores sociais concorrem para conseguir espaço nos veículos de comunicação, e nessa disputa, o terrorismo busca seu espaço por meio da violência.
Uma das hipóteses defendida na tese é a de que o objetivo do terrorismo é a propagação do medo e a tentativa de intimidação a partir de um ato exemplar que garanta a eficácia da transmissão da mensagem, como por exemplo, um grande atentado. Ato que só ganha visibilidade quando noticiado. De acordo com a pesquisadora, é a cobertura sistemática que dá visibilidade às exigências terroristas e que viabiliza o relacionamento contínuo do terrorista com os diversos públicos e atores.“A idéia central é que não existe terrorismo sem um meio de amplificação da mensagem”, diz Fernández.
Divulgar ou não divulgar
Para Fernández, mais do que recair no debate sobre noticiar ou não os atos terroristas, o que deve ser discutido é a maneira como a mídia trata o assunto. Segundo ela, para que essa discussão ocorra é necessário que fique claro: “os veículos de comunicação não são neutros, são atores sociais com participação ativa no processo de construção de significados. Aliás, um dos atores sociais mais cobiçados”, diz ela. Se por um lado, a pesquisadora destaca a importância de observar a forma como a mídia cobre o terrorismo, compreendendo que “os meios de comunicação não são um espelho fiel do que ocorre na sociedade”, por outro lado, recomenda atenção sobre a maneira como o terrorismo se projeta e se insere nas pautas dos meios de comunicação.
Conflito geopolítico
O cientista político Samuel Huntington é conhecido por cunhar a expressão “choque de civilizações” para tratar do conflito entre o “ocidente-democrático” e o “oriente-islâmico”. A expressão tem vindo à tona novamente na mídia desde a publicação de 12 charges sobre o profeta Muhammad, em um jornal dinamarquês. As charges foram consideradas ofensivas ao islamismo e têm gerado muita polêmica. O governo do Irã cortou relações comerciais com a Dinamarca e, em retaliação, a União Européia ameaçou cortar laços econômicos com o Irã. Além disso, passeatas em diversos países protestaram contra a publicação e outros jornais na França e na Noruega também publicaram as charges. Sobre essa questão, Fernandéz afirma que existe um conflito geopolítico, mas não um “choque de civilizações” e refuta a tese de Huntington que prega a idéia de que o confronto entre blocos culturais tão diferentes é inevitável. Para a pesquisadora, a publicação das charges foi um ato infeliz. “Não houve uma tentativa de compreensão do que aquilo poderia significar. Para os muçulmanos, não se pode fazer ironia com o que é sagrado, e foi isso que as charges fizeram. Não existe um significado compartilhado”, afirma.
De acordo com a pesquisadora, cada veículo tem sua abordagem própria, mas uma característica comum a todos é a concepção do terrorismo como um conflito ideológico bipolar. Acerca disso, Fernández detectou que a cobertura das revistas pesquisadas recai na atribuição de responsabilidades em dois pólos. “Por meio da análise das cartas dos leitores desses veículos, conclui que a responsabilidade é atribuída parte à política externa americana, parte ao fanatismo religioso islâmico”, diz ela. É desta forma, que o problema se configura como um conflito cultural de grandes proporções.
A questão da relação com o outro, ou a “relação de alteridade”, para usar uma expressão da antropologia, é central nessa discussão para Fernández. O fundamentalismo, religioso ou não, tende a evitar o que é diferente, especialmente o que parece antagônico. A pesquisadora sublinha que a recusa do outro e a redução das possibilidades de intercâmbio criam a situação de polarização e a conseqüência disso é a criação de explicações cada vez mais simplificadas.
“O fundamentalismo é um fenômeno do mundo moderno, uma reação à modernidade e à constante necessidade de redefinição que ela impõe. O pensamento fundamentalista oferece uma alternativa composta por regras bem definidas, um movimento orientado não à conquista de um mundo novo, mas sim de um passado idealizado e utópico”, afirma. Para Fernández, esse tipo de mecanismo de fechamento em si mesmo é uma das bases de muitos conflitos, que envolve não apenas o terrorismo contemporâneo, mas a política externa de muitas potências ocidentais.
A pesquisa de Fernández ainda traz dados sobre os mais diversos tipos de terrorismo, desde Unabomber, o solitário indignado que enviava cartas-bomba, passando pela seita de ultra direita “O Contrato, A Espada e O Braço do Senhor”, que desejava fazer uma limpeza racial nos Estados Unidos, chegando até o terrorismo de base religiosa praticado por grupos islâmicos radicais. De acordo com a pesquisadora, dos diversos tipos de grupos terroristas, o de caráter islâmico tem um poder de impacto maior porque é mais organizado. Além disso, a identificação entre religião e política dá legitimidade às investidas armadas.
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