Ciência legitima exposição de cadáveres humanos

A OCA em São Paulo recebeu no início deste mês a exposição “Corpo humano: real e fascinante” do médico Roy Glover. A mostra expõe cadáveres humanos e é inspirada na exposição artística Körperwelten, dos anos 90, concebida pelo alemão Gunther von Hagens. Entretanto, as reações do público às duas mostras foram bastante diferentes. A mostra de Glover é muito elogiada e bate recordes de visitas, já a de Hagens recebeu duras críticas.

No início deste mês começou na OCA do Parque do Ibirapuera, em São Paulo, a exposição Corpo humano: real e fascinante, sob direção do médico Roy Glover, professor de anatomia e biologia celular da Universidade de Michigan. Diferente das exposições convencionais em vários aspectos, a mostra apresenta cadáveres reais e alguns órgãos do corpo humano que podem ser manuseados pelo público. A mostra é inspirada na exposição artística Körperwelten (Mundos do Corpo), exibida nos anos 90 e concebida pelo alemão Gunther von Hagens, da Universidade de Heidelberg, na Alemanha. Entretanto, as reações do público às duas mostras foram bastante diferentes. A mostra de Glover é muito elogiada e bate recordes de visitas, já a de Hagens recebeu duras críticas.

Corpos se apresentam como em aula de anatomia, na mostra de Roy Glover
Fonte: www.exposicaocorpohumano.com.br

 

Mas por que será que o alemão foi duramente criticado ao expor suas idéias, e o médico Roy Glover tem o apoio da sociedade? Para Elenise Pires de Andrade, que concluiu seu doutorado pela Faculdade de Educação da Unicamp, isso acontece pois há uma sutil diferença nos discursos e nas palavras que tentam apresentar e explicar cada uma das exposições. Glover carateriza sua exposição como uma mostra de caráter científico e educacional que pretende divulgar os mecanismos do complexo funcionamento do corpo. Em entrevista à Folha de São Paulo, no dia 28 de fevereiro, Glover disse que sua mostra “é científica e não artística”. Para Andrade, essa afirmação do médico “carrega tantos acordos e jogos de poder morais que mais mereceria estar em um livro de alguma religião do que em compêndios artísticos ou científicos”. A legitimidade alcançada por Glover em sua exposição se “apóia em todo o peso atribuído à ciência atualmente em nossa sociedade, como portadora de todas as certezas e soluções para os complexos problemas da humanidade”, analisa Andrade.

Homens galopam em cavalo, na exposição do alemão Gunter von Hagens
Fonte: www.auladeanatomia.com

 

A exposição do alemão von Hagens, entretanto, tinha apenas objetivos artísticos e estéticos. Embora tenha sido responsável pela criação e aperfeiçoamento do processo chamado de plastinação dos corpos – que ao dar maior plasticidade aos corpos, facilita o manuseio e a exposição sem deixar cheiros – a exposição dos corpos como “peças de arte” recebeu inúmeras críticas ligadas à ética e a legalidade de suas atividades, e levou Hagens a abandonar a cátedra de Heidelberg. As críticas, que partiram de setores da Igreja e da sociedade e revelavam a inquietação dos espectadores diante da “banalização da morte e do corpo”, expressas pelo alemão. Pode-se entender, portanto, as razões que levaram Hagens a ganhar o apelido de “Dr. Morte”, uma referência ao seu “cemitério ilegal”. Andrade comenta que a polêmica envolvendo as exposições de von Hagens circula em torno da já apresentada “intocabilidade do corpo humano”. Na opinião dela, o ponto mais polêmico das obras do artista é o rompimento da fronteira da pele que expõe a tensão intimidade-público. “O médico alemão nos provoca e inquieta com outros lugares, outras posturas não comuns para corpos mortos. Estariam mesmo mortos no sentido de ausência de comunicação e produção de sentidos?”, questiona Andrade.

Poderia a mostra Real e fascinante controlar as sensações dos espectadores com as palavras que a caracterizam: científica e educativa? Para Andrade, “a realidade do fascínio do corpo humano é explodida em ambas as produções. Glover pode querer propagar seus supostos valores éticos no tratamento com os corpos ’mortos’, mas a irrupção dos sentidos quando nos deparamos com as imagens é a mesma da exposição do alemão”, argumenta e, ainda, complementa: “a diferença está simplesmente nas palavras que tentam apresentar, significar e explicar o inenarrável – a experiência do encontro com esses corpos-objetos”.