Pela primeira vez, o Supremo Tribunal Federal (STF), a mais alta instância do poder judiciário do país, ouviu um grupo de especialistas antes de deliberar sobre um tema. Entretanto, a questão proposta pelos ministros para debate – “Quando se inicia a vida?” -, não é considerada pertinente por pesquisadores pró e contra as pesquisas com células-tronco embrionárias. Para Lenise Aparecida Martins, professora-adjunta do Departamento de Biologia Celular da Universidade de Brasília (UnB), que esteve na audiência, “o verdadeiro debate é ético e jurídico, não biológico”.
As células-tronco movimentaram a audiência pública que aconteceu no dia 20 de abril, devido a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN 3510) movida pelo ex-subprocurador da república Cláudio Fonteles contra o artigo quinto da Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105/05). O artigo permite o uso de embriões congelados em clínicas de reprodução assistida nas pesquisas com células-tronco.
Embora a pergunta “Quando se inicia a vida” fosse a questão central colocada pelo STF, “muitos dos que se posicionaram a favor do uso de células-tronco embrionárias abstiveram-se de respondê-la, não fazendo qualquer menção a ela”, ressalta Martins, que é contrária ao uso de células tronco embrionárias para pesquisas. Durante o debate, as falas dos pesquisadores que defenderam a manutenção do artigo focalizaram outras questões, tais como: o potencial das pesquisas com células-tronco embrionárias; as limitações das pesquisas com células-tronco adultas; na desmistificação de possíveis conseqüências malignas (como câncer) com o uso dessas células; e na ausência de outras perspectivas para tratamento de pacientes, como os que sofreram acidentes.
A pesquisadora da UnB diz não ter dúvidas “de que cada novo indivíduo humano, assim como o de qualquer outra espécie que tenha reprodução sexuada, forma-se na fecundação”. Para ela, o que está em questão não é se esse indivíduo é humano, mas os direitos do ser humano em seus primeiros estágios de vida. “Transformando a questão em biológica, poderíamos ter para ela uma solução técnica. Mas fica evidente que essa solução técnica não existe. Somente assim poderá haver clareza sobre os princípios e valores que estão sendo debatidos e sobre as possíveis conseqüências, atuais e futuras, das decisões que, como sociedade, tomarmos”, defende Martins.
Lygia V. Pereira, professora do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva da Universidade de São Paulo (USP), favorável ao uso de células tronco embrionárias em pesquisas, também acha que houve um erro de foco na convocação da audiência pública. Em depoimento publicado no site do Projeto Ghente Pereira afirma que “não é importante saber quando começa a vida para discutir a constitucionalidade da Lei de Biossegurança. Precisamos esclarecer que tipo de embrião humano estamos tratando na lei”. O argumento da pesquisadora da USP é de que os embriões congelados seriam descartados mais tarde. “Não vamos produzir embriões só para utilização em pesquisa”, complementa. O comércio ilegal de embriões foi uma das preocupações levantadas por Lenise Martins durante a audiência. Para ela, não há garantias de que isso não acontecerá.
Possíveis repercussões
Qualquer que seja a decisão do Supremo, já se anunciam outras possíveis repercussões. O descarte de embriões congelados já é feito pelas clínicas de reprodução assistida, mas se o artigo quinto da Lei de Biossegurança for mantido, essa prática terá mais respaldo para continuar sendo feita, bem como poderão ser abertas brechas para a descriminalização do aborto no país. Entretanto, se o artigo for julgado inconstitucional, poderá abrir precedentes para a proibição e/ou restrição das práticas de reprodução assistida, visto que também são reprovadas por muitos dos que se declaram contrários ao uso de células-tronco embrionárias. Certamente essas questões também devem pesar na decisão judicial que, segundo anunciou o relator, no final da audiência, não será uma decisão entre o “certo e o errado”, mas entre o “certo e o certo”, porque terá que pesar de um lado o direito à vida e de outro os direitos à saúde e à liberdade de pesquisa.
Exercício democrático?
Apesar da imensa maioria dos meios de comunicação no Brasil divulgarem que o debate organizado pelo Supremo foi um exercício direto da democracia, há quem discorde e aponte que este foi apenas um pequeno passo foi dado para uma questão muito complexa. Dalton Luiz de Paula Ramos, professor da Universidade de São Paulo (USP) e Membro da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), assinala que todos os aspectos da realidade precisam ser apresentados para a sociedade, para que ela tenha acesso aos elementos para avaliar e julgar a questão. De acordo com ele, o que aconteceu no STF é um passo importantíssimo, mas não suficiente. “É preciso que outros espaços como esse sejam fomentados”, como a divulgação de novas informações que fomentem a continuação do debate.
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