Estudo desvenda as vertentes terapêuticas de Ilhabela

Medicina convencional, medicinas alternativas e populares são tema de um estudo desenvolvido pela cientista social Silvia Miguel de Paula Peres, no Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais da Unicamp, que expõe a relação entre saúde e ambiente e seus desdobramentos.

Medicina convencional, medicinas alternativas e populares. As diversas vertentes terapêuticas do município de Ilhabela (SP) são objeto de um estudo que expõe a relação entre saúde e ambiente e seus desdobramentos. O trabalho foi desenvolvido pela cientista social Silvia Miguel de Paula Peres, no Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam) da Unicamp.

A identificação das relações entre saúde e o ambiente é a principal constatação do estudo, que originou a tese de doutorado As vertentes terapêuticas em Ilhabela, SP: transformações socioambientais, processos saúde-doença e relações ser humano-natureza, orientada pela professora Sônia Regina da Cal Seixas, do Nepam. Nesse trabalho, o ambiente é compreendido em suas distintas dimensões – à dimensão biofísica e ecológica, associa-se o ambiente socialmente construído e simbolicamente representado.

O município de Ilhabela é um arquipélago cuja ilha principal apresenta o que Peres chama de “realidade dual”: um lado urbanizado e sustentado pelo turismo, voltado para o canal de São Sebastião, e outro lado voltado para o oceano, ocupado por uma floresta de mata atlântica remanescente e preservada na unidade de conservação do Parque Estadual. Neste lado vivem comunidades de caiçaras, que têm acesso à parte urbanizada quase exclusivamente por via marítima.

Três sistemas de saúde – privado, público e popular – foram identificados pelo estudo no município. “As doenças podem ser interpretadas de inúmeras maneiras e o processo terapêutico também pode ser conduzido de acordo com articulações infinitas entre natureza e cultura”, afirmou Peres na abertura de sua defesa de tese. Nesse sentido, os segmentos socioeconômicos com os quais interagem e as ideologias a respeito das doenças e de seus tratamentos diferenciam as abordagens dos três sistemas terapêuticos que atuam em Ilhabela.

Foram estudados no lado urbano do arquipélago os sistemas privado e público de saúde – este último representado pelo Programa Saúde da Família, pelo Centro de Apoio Psico-Social, pelo Pronto-Socorro e pelo Hospital Mário Covas. Todos os terapeutas entrevistados nesse lado de Ilhabela são migrantes, atraídos por um município cuja economia é sustentada pelo turismo. Entre os caiçaras do lado oceânico do arquipélago, curandeiros, parteiras, benzedeiros, ervateiros e rezadeiras representam os terapeutas da medicina popular. Enfermeiros, médicos, dentistas e psicólogos do sistema público de saúde chegam às comunidades de caiçaras por meio do barco batizado de “ambulancha”. Mas a visita semanal depende das condições do tempo e do mar, o que faz com que o conhecimento local e os recursos naturais próprios por vezes tenham que solucionar situações de emergência.

Tanto os terapeutas do lado urbano quanto os do lado oceânico de Ilhabela, representantes dos três diferentes sistemas de saúde, identificaram nas principais doenças que acometem os moradores da ilha as consequências de uma realidade permeada por problemas socioambientais, ligados ao processo de urbanização e degradação ambiental. A deterioração das condições de vida e de higiene e das relações sociais, e a inserção de hábitos modernos (ligados a alimentação, sedentarismo e consumo exagerado de álcool, por exemplo), são vistas como parte de um processo vivido por todos os grupos sociais do arquipélago. Nesse contexto, hipertensão arterial, diabetes e alcoolismo são as doenças que mais afetam os moradores de Ilhabela, e são interpretadas pelo estudo como reflexo do desequilíbrio gerado pelo modo de vida dos moradores. “Em termos práticos, o tratamento dessas doenças não se resume em tomar remédios. Se o paciente não mudar seus hábitos cotidianos, ele não consegue um resultado positivo”, ressalta Peres.

Diante desse cenário, o estudo descreve, entre as vertentes terapêuticas de Ilhabela, dois movimentos. De um lado, a inserção das terapias alternativas na parte urbana do arquipélago e, de outro, o avanço da medicina convencional entre os caiçaras. Para Peres, os dois movimentos não são contraditórios. “Mas são complexos e necessitam de uma compreensão mais detalhada”, pondera a pesquisadora.

“As bibliografias na área da saúde já vêm sinalizando, há alguns anos, um intenso crescimento da procura pelas medicinas denominadas de alternativas, tanto por parte dos terapeutas quanto dos pacientes”, diz Peres, observando que o espaço encontrado pelas terapias alternativas não é uma particularidade de Ilhabela. Segundo a pesquisadora, o fenômeno vem ocorrendo na América Latina de modo geral. “Mas, pelo fato de Ilhabela ser um pólo turístico de alto padrão, acredito que isso deva atrair um número mais significativo de terapeutas alternativos para a cidade”, acrescenta.

Diversos terapeutas de Ilhabela atuam como clínicos nos centros de saúde pública e como alternativos em seus consultórios – como o único homeopata do município, que também atua na pediatria, ou a acupunturista que trabalha também na clínica geral. Mas a oferta de terapias alternativas no arquipélago não se restringe ao setor privado. Está também presente no sistema público, o que o estudo avalia como paradoxal. A medicina convencional, à qual teoricamente deveria restringir-se o processo terapêutico nessas instituições, é articulada a outras práticas, como florais, massagens, homeopatia ou elementos da medicina chinesa. Essa abertura é reconhecida como um novo movimento social, o sincretismo terapêutico.

Peres considera positiva a inserção de diferentes instrumentos terapêuticos no setor público, pela associação da medicina convencional a outros saberes. “O Sistema Único de Saúde (SUS) vem com uma proposta de prevenção e de educação que esses terapeutas entendem muito bem, pois não têm uma visão estritamente biológica das doenças”, ressalta a pesquisadora. De acordo com o estudo, a medicina convencional é atualizada pelos terapeutas de Ilhabela, associada a outros conhecimentos, em resposta à amplitude de dimensões exigidas pela complexidade socioambiental do município. “O sincretismo terapêutico é, efetivamente, o resultado de uma visão mais integrada dos problemas de saúde, inclusive associada ao ambiente”, avalia Peres. A articulação de diversas vertentes caracterizaria a busca por um tratamento mais totalizante frente às necessidades dos pacientes, que envolvem problemas não só físicos, mas também econômicos, psicológicos e espirituais.

Paralelamente, nas comunidades de caiçaras do lado oceânico de Ilhabela, cresce a dependência da medicina convencional, em detrimento da vertente popular. “O fenômeno é paradoxal, pois o avanço da biomedicina (ou medicina convencional) tem levado à perda do conhecimento local”, aponta Peres. A pesquisadora cita como exemplo a situação em que caiçaras ficaram esperando a “ambulancha” para socorrê-los em um caso de desidratação, ao invés de tomar água de coco. A questão é interpretada no estudo como reflexo da falta de identidade com o universo circundante e da insegurança dos caiçaras, que não acreditam mais que possam tomar a iniciativa diante desses problemas. Soma-se a isso a transformação das doenças ao longo dos anos e a insegurança frente àquelas consideradas ”modernas”, para as quais o saber local não apresentaria soluções.

De acordo com o estudo, a presença da medicina popular ainda é significativa na parte oceânica de Ilhabela. A compreensão da natureza, da fauna e da flora, refletida na rica simbologia dos processos terapêuticos populares, é manifestação do conhecimento antigo que sobrevive nas comunidades, mas corre o risco de se perder pelo avanço da medicina convencional e dos hábitos modernos no cotidiano dos caiçaras. “Alguns hábitos modernos levam a uma visão alienada de doença, pois as pessoas passam a acreditar que a cura é obtida apenas pelo efeito do remédio e pela atuação do médico. O imediatismo das pessoas no processo terapêutico foi uma questão muito citada nas entrevistas”, argumenta Peres. Para a pesquisadora, esses hábitos prejudicam a capacidade de reação dos caiçaras às adversidades ambientais, em especial nos momentos em que não conseguem buscar mantimentos e remédios na cidade em virtude das condições do mar. Por outro lado, quando a medicina convencional não soluciona os problemas, a relação pode se inverter na reafirmação do conhecimento local.

A maneira como os terapeutas das diferentes vertentes articulam o conhecimento à prática revela as distintas dimensões do ambiente incorporadas à saúde. Para a pesquisadora, nesse sentido, Ilhabela pode ser considerada um exemplo representativo de uma realidade maior. “Os impactos dos processos de urbanização desordenada na saúde são verificados por vários autores, em diversas regiões do país e do mundo”, justifica. Essa associação entre saúde e ambiente e a interpretação do adoecimento em seu contexto vêm, aos poucos, ganhando espaço na agenda de discussões. Diante disso, Peres avalia que seu estudo contribui para leituras menos lineares dos processos saúde-doença. “Vejo muitos artigos científicos relacionando o ambiente à saúde apenas no aspecto biofísico e ecológico. Mas existe também o ambiente construído socialmente, e representado simbolicamente, que leva a análise para dimensões singulares, ligadas aos atores e aos contextos locais”, defende a pesquisadora.

A história da poluição do sedimento na Baixada Santista

Pesquisadores do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e do Departamento de Geoquímica da Universidade Federal Fluminense (UFF) desvendaram em detalhes a história dos últimos 45 anos de alta deposição de elementos químicos no sedimento do estuário da região de Santos (SP), em decorrência da atividade industrial.

Coletar e selecionar criteriosamente vestígios do passado para contar uma história. Ouvir testemunhos, distinguir detalhes reveladores e interpretar evidências para reconstituir uma realidade de outrora. Eis o ofício dos historiadores. Mas de maneira tortuosamente parecida, é também o que estão fazendo pesquisadores do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e do Departamento de Geoquímica da Universidade Federal Fluminense (UFF). Eles desvendaram em detalhes a história dos últimos 45 anos de alta deposição de elementos químicos no sedimento do estuário da região de Santos (SP), em decorrência da atividade industrial.

“Perfuramos a uma profundidade de dois metros e sessenta centímetros, e trazemos à superfície o material coletado dentro de um tubo. Depois, abrimos esse tubo e procuramos analisar quimicamente cada camada de sedimento coletado. A isto damos o nome de ’testemunho de sedimento’ ou simplesmente ’testemunho’”, diz o geólogo da Unicamp Wanilson Luiz-Silva, um dos autores de um artigo sobre a pesquisa publicado na revista especializada da Sociedade Brasileira de Química. Como em qualquer boa investigação, um testemunho só revela as melhores informações se bem interrogado. No caso desse “testemunho” coletado no estuário do Rio Morrão, o interrogatório não foi baseado em perguntas incisivas, mas na análise química, que propiciou aos pesquisadores uma série de indícios sobre a história da atividade industrial e de sua relação com a contaminação do ambiente sedimentar na região da cidade de Cubatão.

Cubatão, na Baixada Santista, ficou amplamente conhecida nos anos 1980 como um dos lugares mais poluídos e contaminados do mundo. Um forte processo de industrialização marcou a história da cidade a partir de 1955, quando se iniciou a atividade de refino de petróleo. Em seguida, a construção da Companhia Siderúrgica Paulista (Cosipa) e o início de suas operações em 1963 consolidaram a tendência de industrialização na cidade, que se tornou um dos maiores polos industriais da América Latina.

O trem do progresso industrial brasileiro trabalhava a todo vapor, num momento em que as preocupações ambientais ainda não tinham força suficiente para fazerem-se ouvir. Como uma locomotiva a carvão, que deixa para trás um rastro de fumaça, uma siderúrgica inevitavelmente libera pequenos resíduos da produção do aço na forma de compostos de ferro, e isso foi transportado e depositado no ambiente de Cubatão. Da mesma maneira, a indústria de fertilizantes de Cubatão deixou no sedimento o seu próprio rastro, o fósforo. Ambos, ferro e fósforo, estão relacionados ao fato do ambiente da região estar permeado por uma miríade de elementos contaminantes, incluindo o chumbo. E permitiram aos pesquisadores traçar uma história da deposição desses elementos.

Cotejando as informações obtidas pela análise química do “testemunho” com os dados de produção da siderúrgica de Cubatão, os pesquisadores demonstram uma correlação evidente entre a produção industrial e a contaminação do estuário. A concentração de ferro no sedimento tem um crescimento notável na profundidade correspondente ao período em que a siderúrgica estava sendo construída. O nível permanece estável, quase não se diferenciando da concentração de ferro anterior à atividade siderúrgica, até os 95 cm de profundidade do “testemunho”, quando se observa o início de um grande salto na concentração de ferro. “Isso corresponde ao significativo aumento na produção de aço na segunda metade dos anos 1970”, afirma Luiz-Silva. Um declínio brusco é, então, observado nos níveis de concentração de ferro, justamente na camada correspondente a meados dos anos 1980. “Esses dados estão consistentes com o que ocorreu na época. Medidas governamentais de controle da poluição passaram a ser implementadas a partir de 1984”, diz o geólogo. Desde então, segundo o “testemunho”, os níveis de ferro no sedimento oscilaram muito, sem chegar ao pico observado na camada correspondente ao início dos anos 1980, tampouco chegando perto dos níveis naturais, anteriores à produção de aço na região.

A análise dos níveis de ferro e o estabelecimento da história de sua deposição são importantes para entender a origem de elementos químicos altamente tóxicos presentes em inúmeros ambientes da Terra. Esse estudo demonstra que a presença de elementos como o chumbo está evidentemente associada à presença de ferro, que é uma referência importante da produção de aço. E talvez indique que a compreensão do ambiente que serve aos homens – especialmente o de uma região tão negativamente afetada pelo desenvolvimento industrial – hoje passe pelo entendimento de sua constituição no passado.

Geólogos comprovam impacto de meteorito no RS

Na região próxima à fronteira entre Brasil e Uruguai, perto da cidade de Quaraí (RS), uma estrutura montanhosa no formato de um curioso semi-círculo tinha origem geológica desconhecida. Geólogos da Unicamp comprovaram que essa cratera foi formada pelo impacto de um grande meteorito.

Na região próxima à fronteira entre Brasil e Uruguai, perto da cidade de Quaraí (RS), uma estrutura montanhosa no formato de um curioso semi-círculo destoa completamente do cenário plano dos pampas gaúchos. É o chamado Cerro do Jarau, que inspirou lendas populares e serviu de posto de observação militar privilegiado durante a Revolução Farroupilha. Nas últimas décadas, contudo, o interesse folclórico e histórico que cerca o Cerro mudou para o campo das preocupações científicas, guiadas pela seguinte pergunta: qual é a sua origem geológica? Depois de muito tempo sem evidências para uma resposta inequívoca, a geologia pode finalmente tê-las encontrado com o trabalho dos pesquisadores Álvaro Crósta e sua aluna Fernanda Lourenço, do Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O Cerro do Jarau foi formado pelo impacto de um grande meteorito: esta é a conclusão do artigo dos geólogos da Unicamp, a ser publicado em março como capítulo do livro Large meteorite impacts IV, editado pela Geological Society of America.

Não é novidade a suspeita de que o Cerro fosse uma cratera provocada por impacto de meteorito. Antes que Crósta e Lourenço coletassem as evidências que demonstram a origem celeste da cratera, estudos de pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) já cogitavam essa possibilidade. A diferença é que as pesquisas anteriores não haviam conseguido identificar o “cano fumegante” do impacto ocorrido há muitos milhões de anos.

As provas inequívocas encontradas por Crósta e Lourenço são as chamadas brechas de impacto. “São fragmentos de variadas dimensões que são reunidos e formam numa nova rocha no processo de impacto”, esclarece Crósta. Outra evidência importante do impacto é a ocorrência de PDF’s (do inglês Planar Deformation Feature), que, segundo o pesquisador, são “fraturas microscópicas que formam estrias em grãos de quartzo”. Essas evidências, bem como o exame de imagens de sensoriamento remoto por satélite, ajudam não apenas a comprovar a ocorrência do impacto como também algumas de suas características básicas.

Para se ter uma ideia da violência cósmica que originou o Cerro do Jarau, Crósta estima que a energia liberada pelo impacto tenha sido o equivalente a 550 mil bombas atômicas similares à que destruiu a cidade de Hiroshima em 1945. O meteorito, calculado entre 600 e 700 metros de diâmetro, deixou uma cicatriz em formato semi-circular de aproximadamente 13,5 quilômetros de largura, com elevação de mais de 200 metros sobre o solo. A época em que ocorreu o impacto ainda está sendo investigada. Estima-se, no entanto, que tenha sido há várias dezenas de milhões de anos.

A importância dessa cratera para o estudo dos astroblemas – como são chamadas as cicatrizes deixadas na superfície terrestre pelo impacto de meteoritos – está na raridade de crateras no nosso planeta formadas em basalto, embora sejam abundantes nos outros planetas rochosos e na Lua. Como os pesquisadores apontam no artigo sobre o Cerro do Jarau, a cratera estudada foi formada sobre rochas basálticas, comuns na região Sul do Brasil. Por isso, ela fornece oportunidades de estudo privilegiadas sobre esse tipo de formação geológica.

A cratera do Cerro do Jarau é apenas a sexta de existência comprovada no território brasileiro – quatro delas, pelo próprio Àlvaro Crósta. Comparadas com o número de astroblemas conhecidos na Europa, América do Norte e Austrália, as poucas crateras brasileiras não significam que menos asteroides caíram por aqui. “O campo de estudos de impacto ainda se encontra em estágio inicial no Brasil”, afirma o geólogo. Crósta esclarece, por fim, que a comprovação de que uma formação geológica se trata de uma cratera não é um fim em si mesmo. “Isso abre caminho para uma série de novos estudos. A comprovação é apenas o começo do que deve vir pela frente”, conclui.