“Temos uma produção muito relevante na área de teoria social, interdisciplinaridade e questão ambiental na América Latina”, sentencia a pesquisadora Leila da Costa Ferreira, do Núcleo de Estudos e Pesquisas Ambientais (Nepam), da Unicamp, com base nos frutos de quatro anos de estudos a respeito da produção intelectual latino-americana voltada às relações entre ambiente e sociedade, que já podem ser acessados por meio de uma base de dados online e, ainda este ano, estarão discutidos em livro.
O projeto temático “A questão ambiental, interdisciplinaridade, teoria social e produção intelectual na América Latina”, coordenado por Ferreira e apoiado pela Fapesp, foi desenvolvido por uma equipe que reuniu cientistas do Nepam e de outras instituições, além de alunos de graduação e pós-graduação. A base de dados e a análise teórica foram norteadas por uma ampla pesquisa bibliográfica, além de visitas aos principais centros de pesquisa da área nos países estudados – Brasil, Argentina, Chile, Colômbia, México e Uruguai. Também foram feitas entrevistas e realizou-se um seminário internacional que reuniu cientistas dos seis países para discutir o tema na Unicamp.
“Não pensei que íamos encontrar tantos pequenos grupos pensando questões tão diferenciadas na América Latina como um todo”, confessa Ferreira, ao analisar a riqueza temática encontrada pelo estudo e disponibilizada na página eletrônica do Nepam, por meio da base de dados LAMAS – Latino Americana em Ambiente e Sociedade. Referências bibliográficas e resumos de cerca de cinco mil publicações relacionadas à questão ambiental e desenvolvidas por latino-americanos podem ser pesquisados por meio de palavras-chave na base de dados de livre acesso.
Saúde coletiva, qualidade de vida, sustentabilidade, socioambientalismo, Amazônia e tecnociência estão entre os temas discutidos nos estudos encontrados durante a pesquisa e elencados pela base de dados. Linhas de pensamento teórico sobre a questão socioambiental, presentes nas discussões internacionais, estão também na produção científica latino-americana. Na avaliação de Ferreira, essa produção é não só numerosa, mas de qualidade. “É refinada, do ponto de vista teórico, e acompanha o debate internacional. Isso é muito interessante, não acontece em qualquer lugar do mundo”, defende a pesquisadora.
A introdução da temática ambiental nas ciências sociais é relativamente recente, a partir dos anos 1960. Para Ferreira, entre as hipóteses sobre o que teria estimulado esse início está o fato de que a sociedade e seus atores já estavam trabalhando a questão ambiental em suas ações, sob o ponto de vista do movimento social, de ONGs, governos, instituições e políticas ambientais. “Os cientistas sociais correram atrás do prejuízo. Nós não tínhamos uma tradição, nem empírica nem teórica, pra trabalhar com a questão ambiental”, aponta a pesquisadora. Ela chama atenção, ainda, para o fato de que as ciências sociais também começaram a repensar seus objetos de estudo, inclusive sob o ponto de vista da interdisciplinaridade, e nessa discussão, apareceu a problemática ambiental.
Ferreira afirma que a desigualdade social e a alta biodiversidade são questões que perpassam toda a produção intelectual dos países estudados. “Isso nos dá uma característica diferente no debate internacional e faz com que a nossa produção seja bastante ouvida e debatida”, analisa. A pesquisadora exemplifica a influência das duas questões na pesquisa latino-americana com a atualidade das discussões sobre as dimensões humanas das mudanças ambientais globais. “O mundo acordou para essa questão há poucos anos e a produção na América Latina, nessa área, é muito pequena. Mas nós estamos falando sobre questão ambiental, do ponto de vista das dimensões humanas, há mais de duas décadas no Brasil”, argumenta Ferreira. Ela conta que o tema da relação entre o ambiental e o social sempre esteve presente na produção intelectual feita no Brasil, México e Chile, e se espalhou pelos outros países da América Latina. O mesmo não acontece em outros lugares, nos quais a ecologia ou as ciências sociais são fortes individualmente.
“A questão ambiental é eminentemente interdisciplinar”, defende Ferreira. Para a pesquisadora, o assunto pode ser analisado disciplinarmente, mas para estudá-lo de maneira ampla e complexa, é preciso pensar de forma integrada. “Por isso a importância da interdisciplinaridade: pensar as dimensões ecológica, social, política e institucional, cultural, biológica e assim por diante. Porque tudo isso diz respeito à questão ambiental”, justifica.
“A institucionalização dessa discussão, rumo à interdisciplinaridade, aconteceu em pouquíssimos lugares do mundo. E um dos primeiros foi o Brasil”, salienta Ferreira, lembrando que o país foi o primeiro a ter uma associação nacional interdisciplinar de pesquisa e pós graduação em ambiente e sociedade, Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ambiente e Sociedade (Anppas), criada em 2000. Para a pesquisadora e de acordo com o estudo, esse processo é consequência da produção intelectual. A área da ciência que aborda as relações entre ambiente e sociedade está fortemente institucionalizada em alguns países latino-americanos e, em outros, está rumo à institucionalização. “O Brasil é liderança nesse processo. Brasil, México e Chile, certamente”, afirma Ferreira.
A pesquisa desenvolvida no Nepam demonstrou que a atenção dada à temática ambiental por universidades e centros de pesquisa latino-americanos contradiz estereótipos e, nesse contexto, gerou resultados recebidos com surpresa por pesquisadores estrangeiros, quando apresentados em eventos internacionais. “Quando você demonstra que mesmo nos países periféricos, apesar das condições adversas de verba e etc., se faz uma ciência ou uma produção teórica refinada, as pessoas se surpreendem. Ainda mais em se tratando de um tema super inovador, que é a questão ambiental, e a partir de uma reflexão muito nova, que é a discussão da interdisciplinaridade e da teoria social. Isso é novo em várias partes do mundo”, argumenta Ferreira.
Para a pesquisadora, diversos fatores contribuíram para o desenvolvimento da América Latina na área. Entre eles, no caso brasileiro, a geração de pesquisadores que completou sua formação acadêmica no exterior e trouxe a busca pelo novo e pelo debate internacional na construção de uma nova área no país. Outro fator estaria na força da política entre os latino-americanos, ao mesmo tempo ligados na questão ambiental e, por exemplo, com históricos de ditaduras militares. “Essa coisa da política, do verde, da esquerda, tudo se misturava para nossa geração. Eu acho que isso também se refletia na produção intelectual”, analisa Ferreira. “Isso tudo tem a ver com essa especificidade na nossa produção intelectual. Uma produção, para o bem ou para o mal, muito politizada”, completa.
Além de disponibilizar a base de dados construída a partir dos quatro anos de estudo, a equipe do projeto temático vai publicar, em livro, a síntese e uma análise dos resultados da pesquisa. Os capítulos contemplam não só as discussões mais gerais, mas também temas que acabaram recortados ao longo do desenvolvimento do projeto, como a visão internacional da produção intelectual latino-americana, a questão política, a posição do Brasil na agenda internacional de meio ambiente e a interdisciplinaridade, além de alguns dos principais temas da produção científica latino-americana em ambiente e sociedade encontrados durante pesquisa. A questão ambiental na América Latina – teoria social e interdisciplinaridade, co-edição entre a Unicamp e a Fapesp, tem previsão de lançamento para outubro de 2010.