Apesar da imagem de país multicultural e tolerante, o preconceito existe e está presente no cotidiano e na sociedade brasileira em suas mais diversas formas. Na maioria das vezes, ele se mostra de maneira velada e não explícita e, a partir dele, acontecem as ações discriminatórias. É o que mostra um grupo de pesquisadores do Programa de Pós-graduação em Epidemiologia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e do Instituto de Medicina Social (IMS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), que por meio de um estudo qualitativo, buscou compreender como os diferentes processos da discriminação ocorrem entre estudantes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da própria Uerj.
A pesquisa faz parte do doutoramento de João Luiz Bastos na UFPel. O doutor em epidemiologia Eduardo Faerstein, co-orientador de Bastos e membro do IMS da Uerj, sugeriu que a pesquisa fosse feita no Rio. “Ele me convidou para fazer o estudo na cidade, levando em consideração o fato de que a instituição onde atua tem alunado com perfil bastante diversificado do ponto de vista socioeconômico (renda, escolaridade, origem social) e demográfico (cor, sexo, idade). Achamos que esse perfil diversificado seria rico e interessante como contexto no qual a pesquisa seria conduzida”, comenta.
O estudo foi iniciado em 2008 e divulgado na edição de fevereiro de 2010 da Revista de Saúde Pública. A pesquisa envolveu cinco grupos de 43 alunos de ambos os sexos e autoclassificados nas categorias de cor/raça branca, parda e preta. A Uerj e a UFRJ foram escolhidas porque recebem alunos de realidades econômicas e sociais distintas e por possuírem um esquema de ingresso diferenciado, sendo que a instituição estadual reserva um número determinado de vagas para estudantes de baixa renda e classificados como pardos ou negros. Tendo em vista que a relação de candidatos por vaga de cada curso poderia influenciar de alguma maneira na discriminação e no preconceito, foram selecionados universitários de diferentes cursos: ciências sociais, educação física e medicina.
Durante os encontros com os cinco grupos, os pesquisadores utilizaram um roteiro que abrangia os termos preconceito e discriminação e que questionava os participantes acerca de suas experiências discriminatórias, estimulando os entrevistados a pensarem e discutirem sobre os conceitos e as ações. Os pesquisadores adotaram o método de interpretação de sentidos, em que se busca a compreensão do contexto, da razão e da lógica das afirmações feitas pelos entrevistados. Além disso, foram analisados também os fatores que afetam a percepção da discriminação e os cenários e motivos das experiências discriminatórias.
De acordo com Bastos, quando estimulados a pensar sobre os termos “discriminação” e “preconceito”, os estudantes apresentaram definições bastante rigorosas desses conceitos. Para eles, “preconceito estaria mais ligado a uma ideia pré-concebida em relação a algo ou alguém, podendo ser uma ideia tanto positiva quanto negativa – no sentido de depreciar ou vangloriar. Por sua vez, discriminação se associaria mais com comportamentos observáveis negativos, dirigidos a alguém e frutos de preconceitos previamente existentes”. Bastos lembra ainda que, à medida que as discussões dos grupos aumentavam, as diferenças entre esses dois termos ficava menos nítida.
A partir desse estudo, Bastos diz ainda que as situações de discriminação tornam-se mais difíceis de serem enxergadas por conta da intimidade, do tom de voz utilizado entre o discriminado e discriminador ou se a discriminação acontece de forma velada, por meio de piadas ou brincadeiras. “Tudo isso revela que a interpretação de um comportamento como discriminatório é dada por uma série de condições muito específicas e passageiras das relações que os indivíduos estabelecem entre si, sob a influência de experiências e relações passadas”. Logo, é possível concluir que a interpretação de um tratamento como discriminatório é bastante complexa, tendo que levar em conta a faixa etária dos participantes, os contextos de vida e níveis sociais e os tipos de relações interpessoais que estabelecem. Outra conclusão relevante da pesquisa está no fato dos participantes também se reconhecerem como perpetuadores de ações discriminatórias, agindo também, de certo modo, como discriminadores.
Na opinião do pesquisador, a principal contribuição do estudo está na percepção dos jovens como sendo discriminados em situações corriqueiras de suas vidas e nos mais diferentes tipos de relações, como com colegas de faculdade, familiares, outros tipos de profissionais, entre outras. “Outro aspecto digno de nota foram os relatos de que os jovens perceberam-se discriminados por mais de um motivo, simultaneamente”, explica. Bastos explica que a motivação para esse estudo veio de suas experiências pessoais, vivenciadas na infância. “Fui criado em conjunto com dois primos adotivos negros, em uma região no Sul do Brasil e presenciei algumas experiências de discriminação pelas quais eles passaram e que foram muito marcantes para mim”, finaliza.