Odores indicam o caminho do perigo para presas

Como seria o mundo se ao sairmos na rua pela primeira vez – ou, quem sabe, na selva -, pudéssemos identificar a presença de inimigos sem que nunca houvéssemos nos deparado com eles antes? Pois o mundo é assim – ao menos para alguns. Um trabalho feito na Unicamp demonstra que camundongos conseguem responder à presença de predadores – sejam eles gatos, ratos ou cobras – sem que jamais os tenham visto ou tido nenhum outro contato com eles. E isso se deve a um órgão bastante especializado que fica localizado na região nasal, denominado órgão vomeronasal, ou VNO, que faz parte do sistema olfativo desses animais.

Fábio Papes, professor do Instituto de Biologia da Unicamp, e um dos autores da pesquisa, explica que o fato desse mecanismo ser inato – ou seja, os animais nascem com ele – é importante, pois permitiu aos pesquisadores deduzirem que existem vias pré-programadas geneticamente no sistema nervoso que permitem esse tipo de detecção. “Os genes determinam a existência dessas vias, que já existem para possibilitar ao animal responder a determinados estímulos”, diz. Isso permitiu que os pesquisadores utilizassem a genética para estudar as estruturas moleculares que geram essa resposta.

Mas como os camundongos detectam os seus inimigos naturais através do olfato? Acontece que o VNO possui receptores para substâncias como feromônios e cairomônios. Feromônios são sinalizadores moleculares que permitem a identificação de indivíduos da mesma espécie. Os cairomônios, por outro lado, são sinalizadores moleculares que uma espécie animal produz e que é identificado por outra. Nesse trabalho, o grupo de Papes, em colaboração com um laboratório do Scripps Research Institute, nos Estados Unidos, identificou que a proteína que estava sendo reconhecida pelo VNO do camundongo é um feromônio conhecido como MUP (do inglês, Major Urinary Proteins), presente na urina de rato. Mas, nesse caso, o feromônio estava atuando como um cairomônio – indicando ao camundongo a presença do predador.

O feromônio MUP, na realidade, está presente em várias espécies animais, como na saliva de gatos – como o grupo identificou – e até mesmo em camundongos. Para os camundongos, as MUPs são responsáveis por estimular a agressividade entre os animais, característico da territorialidade entre machos. Mas os pesquisadores descobriram que quando a MUP do gato, por exemplo, é detectada por um camundongo, ela resulta em alguns comportamentos específicos de ansiedade, além de apresentarem características que, em seres humanos, estão associadas ao medo: aumento da taxa respiratória, aumento dos batimentos cardíacos, liberação de hormônio adrenocorticotrófico (ACTH), e consequentemente corticosteronas, dilatação da pupila e diminuição da atividade peristáltica do sistema gastro-intestinal.

Os pesquisadores identificaram no cérebro dos camundongos um grupo específico de células que respondem à presença das MUPs. Em seguida, eles realizaram experimentos em camundongos mutantes que não possuem o VNO ativo e viram que todos os comportamentos relacionados a medo observados antes não existiam mais, e nem a resposta cerebral associada a eles. A partir disso, eles também conseguiram identificar células que respondem somente às MUPs de predadores. “Nós identificamos uma série de regiões dentro do sistema nervoso que respondem a essas moléculas e algumas delas parecem responder bastante especificamente”, explica Papes. Uma questão que ainda intriga os cientistas tem a ver com as razões pelas quais os predadores continuariam a produzir uma substância que avisa a presa de sua presença. Para Papes, é possível que as MUPs executem uma função específica e indispensável nas espécies de predadores, uma função ainda desconhecida da ciência. As espécies de presa, por outro lado, acabaram desenvolvendo um sistema para detectar estas proteínas, se beneficiando do fato de que os predadores não podem perder as MUPs. Nesse modo de evolução, chamada de co-opção, um organismo passa a utilizar uma proteína pré-existente para executar uma nova função.

Segundo o pesquisador da Unicamp, esses variados mecanismos de detecção teriam surgido através da duplicação e evolução de agrupamentos de genes primitivos envolvidos no processo molecular de detecção de odores, e novas propriedades diferentes foram sendo conferidas às novas cópias dos genes ao longo da evolução. Após milhares de anos de modificações, parte desses genes em uma espécie adotou uma função na detecção de odores entre espécies diferentes, como no caso da detecção dos cairomônios. Posteriormente, outros genes assumiram a função de detecção de odores dentro da mesma espécie, como os feromônios, que geram uma ampla gama de comportamentos associados, como agressividade,comportamento sexual e cuidado maternal.

Os sentidos, o medo e a lógica do cérebro

O trabalho abre muitas questões ainda a serem investigadas. Por exemplo, como ocorre a detecção diferenciada de MUPs como cairomônios ou feromônios pelo cérebro? Ou como agem os receptores? Ou como se organiza a resposta neural a diferentes cairomônios? Além disso, o sistema olfativo é muito pouco conhecido, até mesmo em seres humanos. Papes explica que dentro da cavidade nasal existem vários sub-sistemas olfativos, dos quais o epitélio olfativo (camada de células da superfície) e o VNO são apenas os mais conhecidos. “Todo o conjunto de sub-sistemas ainda precisa ser compreendido, não só para entender como o sistema olfativo funciona, mas para entender como o cérebro evoluiu em relação à detecção de toda essa variedade de informações, e aí usar essa informação pra entender os nossos outros sistemas sensoriais”, diz.

Essa linha de estudo tem também implicações no entendimento do medo, uma vez que as respostas cerebrais estudadas em camundongos ocorrem no sistema límbico, também relacionado com emoções em seres humanos. “Como essas regiões estão presentes, nós acreditamos que compreendendo como elas funcionam nesse modelo de animal simples, em que a gente pode correlacionar entrada e saída, poderemos entender como funcionaria no caso de seres humanos”, diz.

Dentro de uma visão mais ampla, os estudos procurarão entender quais as relações dentro do cérebro entre esse e os outros sistemas sensoriais e como se dá a integração entre eles. “Descrever um padrão de ativação é uma coisa, mas compreender a lógica que está por trás dele, que é o que eventualmente vai ser utilizado pela comunidade científica para responder àquela pergunta imponderável – que é como o cérebro interpreta isso -, essa lógica é difícil, nós ainda temos que chegar nela”, completa.

Para saber mais, o trabalho pode ser acessado na íntegra no link: http://www.cell.com/abstract/S0092-8674%2810%2900355-7#Summary. Um vídeo explicativo dos autores, em inglês, pode ser visto no mesmo link, no botão PaperFlick (à direita da tela, sobre o gráfico).

Melhora econômica não garante avanços sociais, ambientais e de saúde na Amazônia Legal

Apesar do crescimento econômico, os estados que compõem a chamada Amazônia Legal – composta pelo Acre, Pará, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Rondônia, Roraima e Tocantins – ainda apresentam problemas sociais, ambientais e de saúde, contrariando o pensamento comum de que a melhora na economia traz, conseqüentemente, mudanças positivas nestas áreas. Isso é o que confirma a pesquisa recém-divulgada “Indicadores de sustentabilidade ambiental e de saúde na Amazônia Legal, Brasil”, realizada em 2006 por Leandro Luiz Giatti, doutor em saúde pública pelo Departamento de Saúde ambiental da Universidade de São Paulo (USP), e Carlos Machado de Freitas, também doutor nesta área pela Fundação Oswaldo Cruz.

Para reunir e levantar dados, os pesquisadores utilizaram o modelo “Forças Motrizes, Pressão, Situação, Exposição, Efeito e Ação” (FMPSEEA) proposto pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que foi adotado por apresentar a possibilidade de analisar a relação entre saúde e ambiente de modo sistêmico, identificando as causas que geram pressões e mudanças no estado ambiental. O que, segundo Giatti, permite utilizar a seguinte analogia: “a composição de algo similar a uma foto composta por partes de fotos tiradas do mesmo objeto em distintos momentos”.

A pesquisa salienta que a relação entre crescimento econômico e desigualdades, naquela macroregião, se dá de maneira heterogênea, assim como são distintos os modelos de desenvolvimento, apropriação do espaço e da natureza e as políticas vigentes em cada estado que a compõem. “Nesse sentido, ressaltamos bastante as diferenças entre os estados de Mato Grosso e Amazonas, ambos vem crescendo muito economicamente. O primeiro tem melhores indicadores sociais, mas é o que mais desmata. E o segundo, conserva significativamente o patrimônio natural, porém, apresenta sérios problemas de distribuição de renda e de desemprego”, explica Giatti.

Para o pesquisador, “há diferenças nos modelos adotados entre os estados, mas alguns dos que mais crescem economicamente são também os que mais desmatam (Pará, Rondônia e Mato Grosso), por processos de desenvolvimento fortemente dependentes de recursos naturais, como no caso da soja, do comércio de produtos florestais (madeireiros) e da agropecuária de modo geral”. Esses dados permitem apontar para o desenvolvimento insustentável da região, pois ao mesmo tempo em que se consegue obter bons indicadores de crescimento econômico, redução da mortalidade infantil e aumento da expectativa de vida, o desmatamento e os processos de apropriação desenfreada de recursos naturais vão se intensificando.

O estudo relembra ainda o estreito relacionamento entre desenvolvimento econômico, sustentabilidade ambiental e saúde humana. Em vista está o bem estar e não somente a ausência de doenças, pois isso tudo gera o crescimento, não apenas a economia, e esses fatores são dependentes uns dos outros. “Assim, julgamos primordial, que para a adoção de estratégias de desenvolvimento econômico que tenham, enquanto pré-requisitos, a saúde do ambiente e a saúde da população, que também é determinada pela melhoria de indicadores socio-econômicos”, afirma Giatti. Logo, o crescimento econômico não é garantia de igualdade social e de qualidade de vida.

Ao analisarem os índices de saúde da região, os pesquisadores se deparam com um quadro sanitário bastante delicado. “Prevalecem doenças infecciosas diretamente associadas às radicais mudanças ambientais, como malária, leishmaniose e dengue. Mas também recrudescem problemas como mortes por violência (associadas a tensões sociais e conflitos por terras), mortes por acidentes de trânsito (associadas à urbanização, precário planejamento de vias, etc.) e problemas relacionados ao precário saneamento básico na região. Além disso, algumas doenças fortemente relacionadas à pobreza ainda têm grande importância na região, tais como tuberculose e hanseníase”, complementa. Para o pesquisador, os resultados deixam claro que o desenvolvimento econômico, associado às profundas mudanças ambientais e pouca ação para mitigar desigualdades, não é o melhor caminho para desenvolver a Amazônia em uma perspectiva integral, considerando um objetivo primordial que deve ser a qualidade de vida de seus habitantes.

Programa leva fundamentos das geociências para a educação básica

O currículo disciplinar do ensino fundamental e médio, no Brasil, inclui ciências clássicas como química, física e biologia, mas exclui outras áreas de conhecimento fundamentais na formação da cultura contemporânea. É o que ocorre com a geologia. Buscando preencher esta lacuna e superar a falta de interdisciplinaridade no conhecimento que é oferecido na educação básica, o Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas mantém, desde 1996, um programa de formação e capacitação de professores em ciências da Terra. Atualmente, o programa tem pouco mais de sessenta professores da rede pública em suas fileiras, e vem produzindo resultados animadores: não apenas mostra ser possível formar um corpo docente capacitado para ensinar uma imagem sistêmica do planeta em que vivemos, como pode produzir nos alunos uma visão mais realista sobre os processos naturais que chegam a afetar muitos deles, como enchentes, alagamento e deslisamentos.

Como o conjunto de conhecimentos que chamamos de geologia está diluído em várias disciplinas na educação básica, o tratamento usualmente dado a esse campo científico geralmente deixa muito a desejar. Pedro Wagner Gonçalves, um dos pesquisadores do IG responsáveis pelo programa, afirma que “uma das principais deficiências na educação básica, com relação às ciências da Terra, é que não há uma ideia de sistema sendo trabalhada. Não há uma visão do planeta Terra como um sistema natural”. Pior: noções fundamentais para a concepção de mundo contemporânea, como a ideia de tempo geológico (escala de milhões a bilhões de anos), que são frutos do desenvolvimento das ciências da Terra desde o século XVIII, não são trabalhadas de maneira adequada, justamente pela falta de autonomia da geologia como disciplina na educação básica. Por esse motivo, o programa “exige que os professores façam uma introdução à geologia para os alunos”, diz Gonçalves. Como os docentes não têm formação prévia nos rudimentos da geologia que os possibilite fazer isso, o programa tem como pressuposto a capacitação dos professores, das mais diversas áreas, nos fundamentos das ciências da Terra. O objetivo do programa é “fazer um design do que pode ser ensinado e como relacionar disciplinas diferentes”, diz Gonçalves. Por isso, o trabalho é feito em eixos temáticos, que variam da teoria de sistemas (que lida com a ideia de transformação da natureza) ao estudo do meio-ambiente e do espaço urbano do ponto de vista ambiental.

Embora a execução do projeto seja feita de maneira individual pelos professores, em sala de aula, a preparação das aulas se dá de maneira coletiva – ela é feita entre o grupo todo, professores e pesquisadores. “Se queremos introduzir uma mudança curricular, é preciso criarmos uma dinâmica de colaboração, de áreas e backgrounds diferentes”, afirma Gonçalves. Para avaliar os avanços, tanto com relação à formação dos professores quanto à dos alunos, são utilizados vários métodos: gravam-se ou filmam-se os encontros do programa e as aulas, examina-se o registro no caderno do professor. Um membro do programa geralmente participa das aulas como observador, anotando os principais pontos da intervenção para futura discussão.

Segundo Gonçalves, o “processo de formação continuada de professores para ciências da Terra do IG busca investigar a formação dos alunos no sistema Terra junto com os professores”. Dessa forma, “o papel da universidade torna-se um papel mais interativo, de colaboração, do que de instrução específica”, arremata o pesquisador. No início do programa, os professores eram convidados a participar. Hoje, a participação tem sido voluntária, sem que seja necessária a ida dos pesquisadores até as escolas. Sinal de que a interdisciplinaridade e o esforço de compreensão de nosso planeta podem ser mais do que bem-vindas na educação básica.