Dados de uma pesquisa de 2003 do antropólogo José Jorge de Carvalho, da Universidade de Brasília (UnB), mostram que o percentual de alunos e docentes negros nas universidades públicas brasileiras gira em torno de 0,5%. Mantidas as condições sociais de hoje, a projeção de Carvalho para os próximos 170 anos indica que esse índice não ultrapassará 1% do total.
Tristes informações como essas preocupam uma das maiores instituições científicas brasileiras, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). A atenção se traduziu em debates sobre o tema durante a 60ª Reunião Anual, concluída no último mês, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Dentre as metas figurou a possibilidade de incentivar o ingresso dos negros e pardos no meio científico.
O consenso maior entre os palestrantes ficou a cargo da defesa do sistema de cotas, algo que vem sendo amplamente discutido. Para Sonia Guimarães, pesquisadora do Centro Técnico Aeroespacial (CTA) e palestrante da conferência, para falar do negro na ciência é preciso tratar sobre a entrada dele na universidade. “Como é que os negros vão adentrar no meio científico se só 3% da população universitária brasileira [alunos] é negra?”, questiona a pesquisadora.
As cotas, para Guimarães, são medidas que visam diminuir o impacto da desigualdade social entre brancos e negros visualizados nos dados estatísticos. Por isso, ela criticou o manifesto “113 cidadãos anti-racistas contra as leis raciais” entregue em abril deste ano ao presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes. Tal documento foi assinado por artistas e intelectuais, entre eles Caetano Veloso e Ruth Cardoso, falecida recentemente. A função principal do documento é mostrar que a Lei de Cotas é inconstitucional e geradora de segregação racial, citando, por exemplo, artigos da Constituição brasileira como o 19 que diz: “é vedado à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si”.
De acordo com a pesquisadora do CTA, as estatísticas apontam que essa distinção já ocorre na prática. Dados divulgados pelo Portal UOL e jornal Folha de S. Paulo, em maio deste ano, mostram que mulheres negras ganham 51% do salário das brancas na cidade de São Paulo e que negros ocupam apenas 3,5% dos cargos de chefia. Sonia Guimarães ressalta que os negros dificilmente conseguirão reverter este quadro se não conseguirem cursar uma universidade.
“O manifesto contra as cotas conclui que, basicamente, são as diferenças de renda e tudo que vem associado a elas, e não de cor, que limitam o acesso ao ensino superior. Se a cor não tem nada a ver com isso, porque será que entre os mais pobres só 30% são brancos e 69% são pardos e negros?”, questiona Guimarães.
Unipalmares e ações afirmativas
Para a química Denise Alves Fungaro, pesquisadora do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), as ações afirmativas, como a Lei de Cotas, são medidas importantes contra os fatores negativos que impedem a entrada do negro no meio acadêmico. Entre tais fatores ela cita principalmente o ensino público básico de baixa qualidade, a baixa renda familiar da população negra e a falta de bolsas de pós-graduação. Em seu relato pessoal, a pesquisadora explica que a ausência desses fatores foi determinante para o seu sucesso acadêmico e profissional na área de química ambiental.
Apesar dos problemas, o número de negros nas universidades públicas brasileiras tem aumentado nos últimos anos graças, segundo Fungaro, as ações afirmativas. Além das cotas, ela destaca outros acontecimentos que contribuem tal aumento. O primeiro foi a proliferação dos cursos pré-vestibulares comunitários na década de 1990 que passaram a preparar estudantes de baixa renda para o vestibular. O segundo trata sobre idéias inovadoras nessa área, como a criação da Universidade da Cidadania Zumbi dos Palmares em 2000 na cidade de São Paulo.
A Unipalmares é uma instituição sem fins lucrativos focada na formação de afrodescendentes. Graças a parcerias feitas com diversas empresas do setor privado, os dois mil alunos que atualmente cursam os três cursos oferecidos – direito, administração de empresas e tecnologia de transportes – pagam mensalidades abaixo de um salário mínimo. Em março desse ano a primeira turma de graduação se formou. “Oitenta e nove porcento deles eram negros”, diz Sonia Guimarães.
A idéia principal trabalhada nessa conferência é que medidas especiais precisam ser tomadas para assegurar que o negro, historicamente desfavorecido socialmente, consiga cursar uma graduação e, posteriormente, receba apoio para se especializar ao ponto de ter condições de trabalhar com ciência e tecnologia. Para Sonia Guimarães, o sistema de cotas é uma oportunidade capaz de gerar um futuro melhor a muitos afrodescedentes talentosos. “Se ficarmos podando essa chance da maioria das pessoas [negras] vamos ficar outros 170 anos nas mesmas condições. Precisamos agir diferentemente”.