Papel social do programa do biodiesel está ameaçado, dizem especialistas

Concentração da produção de matéria-prima nas mãos de grandes produtores pode levar o programa do diesel vegetal a descumprir os seus objetivos sociais. Perfil do novo setor começa a se delinear no Brasil e os grandes produtores de soja buscam compensar a queda do dólar com incentivos para a produção de biodiesel.

O programa feito para incentivar a produção de diesel a partir de óleos vegetais e promover a agricultura familiar pode seguir o caminho do etanol e colocar a produção e os rumos do setor nas mãos dos grandes empresários. Essa é a opinião dos economistas Francisco Alves, do Departamento de Engenharia de Produção da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), e Luiz Antonio Prado, ex-coordenador de projetos do Banco Mundial.

Recém-nascido em 2003, engendrado pelo governo federal, o Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel (PNPB) encarnou as esperanças de desenvolver a agricultura familiar, em especial a do pequeno produtor do sertão nordestino, região própria para o cultivo de oleaginosas matérias-primas do biocombustível. Uma legislação específica foi criada para alimentar a demanda por biodiesel e favorecer o pequeno produtor.

Para aquecer o consumo, a Lei 11.097/05 determina que a partir de janeiro de 2008 todo o diesel comercializado no país terá de conter 2% de óleo vegetal (B2). Essa medida garantirá o consumo de 840 milhões de biodiesel por ano, movimentando R$ 1,5 bilhão. Para que parte desse dinheiro fique nas mãos do pequeno produtor rural, foi criado o Selo Combustível Social. Recebem essa chancela as indústrias que compram matérias-primas da agricultura familiar. Além de ser um diferencial de marketing, o selo dá acesso a vantagens tributárias como a redução nas alíquotas do PIS/Pasep e Cofins.

Alves, da UFSCar, porém, vê uma mobilização dos grandes sojicultores do Sul, Sudesde e Centro-Oeste para abocanhar uma fatia do mercado. “Os grandes plantadores de soja estão enfrentando prejuízos, especialmente com a queda do dólar,” revela o pesquisador. “Eles têm grande poder político e pressionam o governo por um programa específico para o biodiesel da soja”. A queda de braço entre o biodiesel familiar do Norte e Nordeste e o da agroindústria da soja já começaria em desvantagem. “O acesso que os grandes produtores têm a fontes de financiamento, por exemplo, não se compara ao crédito concedido aos pequenos,” explica o economista.

Os agroindustriais ganhariam a batalha mesmo fornecendo uma matéria-prima pouco produtiva. A soja está entre os grãos que menos produzem óleo, apenas 17%, perdendo apenas para o algodão que rende 15%. Em comparação, pode-se extrair 20% de óleo da semente de dendê e acima de 40% trabalhando com mamona ou amendoim. O campeão em aproveitamento, porém, é o babaçu com 66% de óleo em sua biomassa.

Para aumentar a disparidade, a própria produção agrícola familiar do Norte e Nordeste não tem promovido a inclusão social almejada pelo governo. Foi o que descobriu o economista Luiz Antonio Prado, doutor em biologia e ecologia humana pela Faculdade de Medicina de Paris. Grandes grupos empresariais internacionais já estão adquirindo propriedades rurais brasileiras e submetendo os pequenos produtores às suas condições. “O Proácool também foi vendido como um programa para desenvolver a pequena agricultura”, lembra Prado, “Porém, quando chegava na usina, o camponês ouvia a conversa: ’volte daqui a três dias’. A sua colheita, então, depreciava e perdia qualidade e valor” comenta. Pressões desse tipo fizeram a maioria das pequenas propriedades serem vendida aos grandes canavieiros.

Ex-coordenador de projetos do Banco Mundial, Prado identificou um movimento internacional de empresas e até de governos de países ricos para garantir lugar na produção de biocombustíveis no Brasil. “A Inglaterra anunciou a criação de um fundo com o objetivo de adquirir 51% das usinas brasileiras produtoras de etanol”, conta o economista, “e até a Secretaria de Agricultura do governo americano chegou a recomendar em seu site as melhores regiões no Brasil para se adquirir terras para a produção de energia de origem vegetal”, revela. O cenário produtivo agrícola de oleaginosas por aqui começa a ser povoado por gigantes, o que ameaça a existência dos pequenos.

Para Prado, todo o PNBP teria que ser repensado. “Não faz sentido colocar biodiesel em toda a produção nacional de diesel para compor o B2, se temos que transportá-lo por grandes distâncias. Seria muito mais racional e viável que as regiões produtoras do biocombustível consumissem o B100 (100% vegetal)”, analisa. Esse mesmo combustível poderia ser utilizado na geração de energia elétrica em regiões isoladas. Essas localidades não estão conectadas a linhas de distribuição de energia elétrica e dependem de geradores a óleo diesel. “A maior parte dessas comunidades está em regiões de incidência de babaçu, o que justificaria a construção de usinas locais de biodiesel”, comenta Prado. O investimento resultaria em economia, já que as comunidades isoladas dependem da Conta de Consumo de Combustíveis, uma subvenção que atingiu R$ 4,5 bilhões em 2006, 25% maior que em 2005, segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).

“Queimar mamona como diesel é torrar dinheiro”

O uso da mamona como uma das matérias-primas do biodiesel é outro erro grave do PNPB, na opinião de Luiz Antonio Prado. O óleo de mamona é bastante valorizado no mercado internacional. Por sua resistência a grandes variações de temperatura e pressão, ele é utilizado como aditivo em combustíveis de aviação e até em motores espaciais da Nasa, a agência espacial norte-americana, além de ter aplicações em próteses e na indústria cosmética. O valor estratégico do produto faz a Casa Branca manter uma Comissão Nacional do Óleo de Mamona, instituição que garante abastecimento e preços favoráveis aos Estados Unidos. O Brasil perdeu para a China e para a Índia a posição de maior produtor mundial desse óleo e irá piorar sua situação nesse mercado se continuar a queimá-lo como um componente do biodiesel, o que seria um “desperdício absurdo”, segundo Prado.

A despeito da maré contrária, o governo acena com dados relevantes, como o emprego atual de 200 mil famílias camponesas na produção de sementes para o biodiesel. Se o programa vai continuar cumprindo esse papel social, é outra história. Mini-usinas de álcool já eram projetadas na década de 1970 para serem geridas por cooperativas de pequenos agricultores. Porém, só os gigantes permanecem hoje no setor sucro-alcooleiro.

“O Proálcool foi criado para salvar a lavoura dos usineiros da crise do açúcar no final dos anos 1970”, lembra Francisco Alves. Na opinião do economista da UFSCar, tirar as rédeas do setor do biodiesel das mãos dos grandes agricultores não será tarefa tranqüila. “Só uma mobilização da sociedade civil poderia mudar esse quadro”, acredita.

Ciência legitima exposição de cadáveres humanos

A OCA em São Paulo recebeu no início deste mês a exposição “Corpo humano: real e fascinante” do médico Roy Glover. A mostra expõe cadáveres humanos e é inspirada na exposição artística Körperwelten, dos anos 90, concebida pelo alemão Gunther von Hagens. Entretanto, as reações do público às duas mostras foram bastante diferentes. A mostra de Glover é muito elogiada e bate recordes de visitas, já a de Hagens recebeu duras críticas.

No início deste mês começou na OCA do Parque do Ibirapuera, em São Paulo, a exposição Corpo humano: real e fascinante, sob direção do médico Roy Glover, professor de anatomia e biologia celular da Universidade de Michigan. Diferente das exposições convencionais em vários aspectos, a mostra apresenta cadáveres reais e alguns órgãos do corpo humano que podem ser manuseados pelo público. A mostra é inspirada na exposição artística Körperwelten (Mundos do Corpo), exibida nos anos 90 e concebida pelo alemão Gunther von Hagens, da Universidade de Heidelberg, na Alemanha. Entretanto, as reações do público às duas mostras foram bastante diferentes. A mostra de Glover é muito elogiada e bate recordes de visitas, já a de Hagens recebeu duras críticas.

Corpos se apresentam como em aula de anatomia, na mostra de Roy Glover
Fonte: www.exposicaocorpohumano.com.br

 

Mas por que será que o alemão foi duramente criticado ao expor suas idéias, e o médico Roy Glover tem o apoio da sociedade? Para Elenise Pires de Andrade, que concluiu seu doutorado pela Faculdade de Educação da Unicamp, isso acontece pois há uma sutil diferença nos discursos e nas palavras que tentam apresentar e explicar cada uma das exposições. Glover carateriza sua exposição como uma mostra de caráter científico e educacional que pretende divulgar os mecanismos do complexo funcionamento do corpo. Em entrevista à Folha de São Paulo, no dia 28 de fevereiro, Glover disse que sua mostra “é científica e não artística”. Para Andrade, essa afirmação do médico “carrega tantos acordos e jogos de poder morais que mais mereceria estar em um livro de alguma religião do que em compêndios artísticos ou científicos”. A legitimidade alcançada por Glover em sua exposição se “apóia em todo o peso atribuído à ciência atualmente em nossa sociedade, como portadora de todas as certezas e soluções para os complexos problemas da humanidade”, analisa Andrade.

Homens galopam em cavalo, na exposição do alemão Gunter von Hagens
Fonte: www.auladeanatomia.com

 

A exposição do alemão von Hagens, entretanto, tinha apenas objetivos artísticos e estéticos. Embora tenha sido responsável pela criação e aperfeiçoamento do processo chamado de plastinação dos corpos – que ao dar maior plasticidade aos corpos, facilita o manuseio e a exposição sem deixar cheiros – a exposição dos corpos como “peças de arte” recebeu inúmeras críticas ligadas à ética e a legalidade de suas atividades, e levou Hagens a abandonar a cátedra de Heidelberg. As críticas, que partiram de setores da Igreja e da sociedade e revelavam a inquietação dos espectadores diante da “banalização da morte e do corpo”, expressas pelo alemão. Pode-se entender, portanto, as razões que levaram Hagens a ganhar o apelido de “Dr. Morte”, uma referência ao seu “cemitério ilegal”. Andrade comenta que a polêmica envolvendo as exposições de von Hagens circula em torno da já apresentada “intocabilidade do corpo humano”. Na opinião dela, o ponto mais polêmico das obras do artista é o rompimento da fronteira da pele que expõe a tensão intimidade-público. “O médico alemão nos provoca e inquieta com outros lugares, outras posturas não comuns para corpos mortos. Estariam mesmo mortos no sentido de ausência de comunicação e produção de sentidos?”, questiona Andrade.

Poderia a mostra Real e fascinante controlar as sensações dos espectadores com as palavras que a caracterizam: científica e educativa? Para Andrade, “a realidade do fascínio do corpo humano é explodida em ambas as produções. Glover pode querer propagar seus supostos valores éticos no tratamento com os corpos ’mortos’, mas a irrupção dos sentidos quando nos deparamos com as imagens é a mesma da exposição do alemão”, argumenta e, ainda, complementa: “a diferença está simplesmente nas palavras que tentam apresentar, significar e explicar o inenarrável – a experiência do encontro com esses corpos-objetos”.

IPCC desconsidera aspectos relevantes para pesquisadores brasileiros

A noção de “consenso”, produzida por pesquisadores sobre o aquecimento global, acolhe diferenças e divergências importantes. No Brasil, cientistas ressaltam que o documento divulgado pelo IPCC não levou em consideração dados sobre derretimentos das geleiras e a influência das correntes marítimas na mudança do clima.

Muitas dúvidas ainda rondam os efeitos do aquecimento global no planeta. A noção de “consenso”, produzida por pesquisadores de institutos e universidades, acolhe diferenças e divergências importantes. Está em jogo não apenas a necessidade de mais estudos sobre o assunto, mas a seleção e conexão que acontecerá entre os resultados na esfera das decisões políticas. No Brasil, pesquisadores ressaltam que o documento divulgado pelo Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, sigla em inglês) não levou em consideração os dados recentes sobre derretimentos das geleiras e a influência das correntes marítimas na mudança do clima. Diante dos cenários produzidos por cientistas, o Ministério do Meio Ambiente (MMA), que também divulgou estudos feitos no final de fevereiro, assume uma postura mais cautelosa tomando os estudos como indicadores e não como verdades absolutas.

Aziz Ab’Sáber, professor emérito de geografia da Universidade de São Paulo (USP), é um dos pesquisadores que tem destacado a necessidade de cautela em relação às informações produzidas na academia. Em entrevista à Folha de São Paulo, divulgada na matéria “Aquecimento é bom para a floresta”, publicada no dia 15 de março, destacou que o relatório do IPCC é um importante instrumento para formulação de políticas, mas acha que foi um “erro” não considerar a influência das correntes marítimas nas mudanças climáticas.

Carlos Nobre, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), em entrevista à ComCiência, ressalta outros aspectos que o relatório do IPCC desconsiderou: os últimos resultados apresentados do derretimento de geleiras. Em sua opinião esses dados podem influenciar em um aumento de até 1m no nível do mar até o final do século XXI. “Isso traz profundas conseqüências para os ecossistemas costeiros, para as populações que habitam as cidades litorâneas como também para as Regiões Metropolitanas”, afirma. O aquecimento da atmosfera pode influenciar no aumento do nível do mar de duas maneiras: pela expansão do volume da água através da expansão térmica pode e pelo derretimento das calotas polares.

No último 27 de fevereiro, o MMA, publicou o relatório intitulado Mudanças Climáticas e seus Efeitos sobre a Biodiversidade Brasileira, coordenado pelo professor José Marengo. O estudo foi encomendado em 2004, portanto antes da divulgação do sumário executivo do IPCC, e baseou-se nos dados do Terceiro Relatório de Avaliação (TRA), de 2001. O estudo do MMA, diferente do IPCC, leva em consideração os dados sobre o derretimento das geleiras e conclui, em relação ao aumento do nível do mar, que o aquecimento pode “provocar um empilhamento de até 20 cm de água na costa do Rio de Janeiro, e calçadões, casas e bares construídos à beira mar poderão ser destruídos”. Cerca de 42 milhões de brasileiros, ou 25% das pessoas que vivem em cidades do litoral, seriam atingidas pela elevação do nível do mar, prevê o estudo.

O estudo analisou o comportamento da água e da temperatura do ar ao longo do século passado, e fez projeções sobre como será o clima brasileiro nos próximos 90 anos. Previsões que apontam para graves conseqüências não apenas para as zonas costeiras, mas para todo o território brasileiro. Os cenários, passados e futuros produzidos pelas pesquisas, colocam em questão os rumos a serem tomados daqui para a frente, tanto na própria academia, como nos órgãos do governo envolvidos na formulação de políticas públicas que visem conter os efeitos do aquecimento global, ou pensar em medidas adaptativas para que a população não sofra consequências desses efeitos.

Por exemplo, para Wagner da Costa Ribeiro, professor de Geografia da Universidade de São Paulo, é preciso focar agora em novos estudos sobre eventos extremos – chuvas fortes, nevascas e secas mais intensas – que serão mais freqüentes, em especial nas áreas metropolitanas. “O que devemos fazer é projetar o cenário de aumento de 2° C em média no Brasil – na visão otimista e 4° na visão pessimista – e avaliar em que medida isso afetaria a dinâmica pluviométrica, a oferta hídrica, e em que medida isso afetaria o deslocamento da população”, defende. Em sua opinião, “uma das questões que deveríamos estar muito preocupados é o deslocamento populacional pelo agravamento das questões ambientais”. A possibilidade de que o aumento do nível do mar atinja as cidades litorâneas coloca em discussão a remoção e realocação da população que genericamente tem sido chamada de “refugiados ambientais”.

Representantes do MMA têm afirmado em diversos jornais e revistas que os estudos sobre as mudanças do clima devem ser vistos com muita cautela. Primeiro, porque as metodologias usadas nas pesquisas não são iguais, e geram resultados diferenciados; segundo, porque as políticas públicas a serem formuladas a partir dos resultados não podem ser equivocadas, pois trariam prejuízos de diversas dimensões.

Tendências na temperatura do ar em algumas cidades do Brasil
Fonte: MMA, 2006

 

Divergências entre os cientistas brasileiros

Durante o 1º Simpósio Brasileiro de Mudanças Ambientais Globais, realizado entre os dias 11 e 12 de março, no Rio de Janeiro e organizado pelo INPE, pesquisadores apontaram a possibilidade do impacto do aquecimento global na Amazônia desequilibrar todo o sistema climático daquela região, levando à savanização da floresta. As pesquisas que Carlos Nobre desenvolve no INPE indicam que é muito forte essa possibilidade. Segundo o pesquisador, a floresta equatorial pode se tornar semelhante ao sertão ou ao cerrado do Brasil, porém bastante empobrecida, com uma fisionomia semelhante ao cerrado, mas com uma diversidade biológica bem inferior.

A savanização da Amazônia não é consensual entre pesquisadores brasileiros. Aziz Ab’Sáber, não concorda com as especulações a respeito das conseqüências do aquecimento na Amazônia e destaca que elas precisam ser vistas com muito cuidado. Para o geógrafo, a Amazônia não vai virar cerrado, o que pode acontecer, devido ao aquecimento da atmosfera, é uma alteração apenas nas bordas da floresta e a penetração de novos minibiomas. “Mas é certo que a floresta vai continuar, pois a oeste, os regimes de chuvas não deverão ser muito afetados”, afirma.

Para saber mais

Emissão de gases precisa cair à metade para salvar Amazônia