Licença compulsória do efavirenz acende discussão sobre patentes

A decisão do governo brasileiro de decretar o licenciamento compulsório do medicamento efavirenz, voltado ao tratamento da aids, levantou a discussão entre os grupos pró e contra a chamada “quebra de patente”. De um lado, as associações de indústrias; do outro, apoiando o decreto, organizações como a Médicos Sem Fronteiras e a SBPC.

A decisão do governo brasileiro de decretar o licenciamento compulsório do medicamento efavirenz, voltado ao tratamento da aids, levantou a discussão entre os grupos pró e contra a chamada “quebra de patente”. De um lado, as associações de indústrias encabeçadas pela Merck Sharp & Dohme, proprietária da patente do remédio; do outro, apoiando o decreto, organizações não governamentais, como a Médicos Sem Fronteiras, e instituições representativas da comunidade científica, como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

O licenciamento compulsório, decretado no último dia 4, foi resultado do fracasso das negociações entre o Ministério da Saúde brasileiro e a Merck. O governo pleiteava o preço que a indústria farmacêutica cobra na Tailândia, US$ 0,65 por comprimido, mas a empresa só aceitou dar um desconto de 30% nos US$ 1,59 cobrados no Brasil.

As patentes são protegidas internacionalmente pelo acordo TRIPS, da Organização Mundial do Comércio. Assinado em 1995, o TRIPS foi concebido para proteger os interesses dos donos de propriedades intelectuais, segundo a especialista Eloan Pinheiro, ex-diretora da Farmanguinhos (Fiocruz), e ex-consultora da Organização Mundial de Saúde. O acordo legitima , por exemplo, a retaliação comercial contra o país que quebrar uma patente. Uma brecha nas regras do TRIPS surgiu em 2001, com a Declaração de Doha, a qual deu autonomia às nações para declarar a utilidade pública de medicamentos que julgar essenciais à saúde pública e emitir licenças compulsórias, se for preciso, para evitar a sua falta.

O Brasil já havia lançado mão outras duas vezes da prerrogativa concedida em Doha, em negociações que também envolviam medicamentos contra o vírus da aids. Em 2001, uma portaria ministerial decretou o neofinavir, da Roche, medicamento de utilidade pública, e em 2003, o mesmo ocorreu com o kaletra, da Abbott. Nos dois casos, os laboratórios baixaram os preços, o que evitou o decreto presidencial da quebra de patente. No caso do kaletra, o Brasil obteve o medicamento pelo menor preço mundial. Porém, a relutância da Merck em igualar o preço do efavirenz ao cobrado na Tailândia, desta vez, fez o governo brasileiro encomendar o medicamento a indústrias indianas pelo preço de US$ 0,45.

A fabricante Merck reagiu, alegando que o preço brasileiro do efavirenz só é menor do que o cobrado na África subsaariana e na Tailândia. Questões sociais explicam o preço africano, mas na Tailândia a queda no preço está relacionada à licença compulsória do mesmo medicamento decretada por aquele país. Além disso, a indústria farmacêutica justificou os preços afirmando ter altos investimentos em pesquisa, os quais estariam ameaçados caso as licenças compulsórias se generalizassem pelo mundo.

A química e especialista em propriedade intelectual Maria Fernanda Macedo discorda. “Vários levantamentos demonstram que os grandes investidores em pesquisas de medicamentos são os governos e as universidades, e não a indústria farmacêutica,” afirma a pesquisadora. Um relatório do especialista James Love, da ONG CPTech, cita que os testes feitos em pacientes nos Estados Unidos em 2004 foram bancados majoritariamente por órgãos públicos como os Institutos Nacionais de Saúde, pelas universidades e por outras fontes federais.

2019Love considera a licença compulsória um recurso legítimo para garantir o acesso mundial aos medicamentos. Ele ainda lembra que a quebra de patentes tem sido usada pelos Estados Unidos para objetivos menos nobres do que salvar vidas. Desde junho de 2006, cortes americanas concederam licenças compulsórias que beneficiaram empresas como a Microsoft (tecnologia DRM), Toyota (tipo de transmissão automática) e Direct TV (sintonizadores), só para citar alguns casos.

Outra questão levantada por grupos não-governamentais é o suposto favorecimento que o tratamento da aids tem no Brasil em detrimento às outras enfermidades. Nesse aspecto, o licenciamento compulsório do efavirenz seria uma prova inequívoca. Jeová Pessin Fragoso, presidente do Grupo Esperança, ONG voltada ao auxílio de portadores da hepatite C na baixada santista, não vê a atenção dada ao HIV de todo ruim. “A luta pelo tratamento da aids abriu caminho para outras bandeiras, como a nossa, da hepatite. Mas também é verdade que o governo tem negligenciado outras doenças”, reconhece Fragoso. “É só verificar que todas as campanhas contra a hepatite C são custeadas pelas ONGs, mesmo sendo um vírus que está se espalhando rápido e já contamina cerca de 5 milhões de brasileiros, no mínimo,” lamenta.

A licença compulsória não ajudaria na situação atual da hepatite C, segundo o ativista. O medicamento de maior peso econômico no tratamento é o interferon peguilado cuja dose semanal sai a R$ 1.300,00 no mercado e que o governo brasileiro compra por R$ 500,00, aproximadamente. Somente dois laboratórios no mundo dominam o processo de fabricação, o que torna inócuo o licenciamento compulsório. O maior obstáculo no caso da hepatite, segundo Fragoso, é a burocracia para conquistar o tratamento gratuito. “Para garantir esse direito, temos entrado com ações na Justiça,” revela.

Evitar ações judiciais foi exatamente um dos motivos da quebra de patente do efavirenz, segundo a pesquisadora Maria Fernanda Macedo. “Sem redução no preço, chegaria-se a uma situação em que o governo não teria mais como pagar o tratamento e seria cobrado através de uma avalanche de ações na Justiça movidas por cidadãos doentes reivindicando seus direitos.” Para Fragoso, o governo deu um passo importante, mas ainda tem que acordar para outros problemas graves de saúde. “Espero que com essa medida, o governo economize dinheiro para investir no tratamento de outras doenças,” anseia o ativista.

Células-tronco, debate vai além do biológico

Pela primeira vez, o Supremo Tribunal Federal (STF) ouviu um grupo de especialistas antes de deliberar sobre um tema. Entretanto, a questão proposta pelos ministros para debate – “Quando se inicia a vida?” -, não é considerada pertinente por pesquisadores pró e contra as pesquisas com células-tronco embrionárias.

Pela primeira vez, o Supremo Tribunal Federal (STF), a mais alta instância do poder judiciário do país, ouviu um grupo de especialistas antes de deliberar sobre um tema. Entretanto, a questão proposta pelos ministros para debate – “Quando se inicia a vida?” -, não é considerada pertinente por pesquisadores pró e contra as pesquisas com células-tronco embrionárias. Para Lenise Aparecida Martins, professora-adjunta do Departamento de Biologia Celular da Universidade de Brasília (UnB), que esteve na audiência, “o verdadeiro debate é ético e jurídico, não biológico”.

As células-tronco movimentaram a audiência pública que aconteceu no dia 20 de abril, devido a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN 3510) movida pelo ex-subprocurador da república Cláudio Fonteles contra o artigo quinto da Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105/05). O artigo permite o uso de embriões congelados em clínicas de reprodução assistida nas pesquisas com células-tronco.

Esculturas de Patricia Piccinini “Nós somos uma família”.
Fonte: http://www.patriciapiccinini.net/wearefamily/index.php

 

Embora a pergunta “Quando se inicia a vida” fosse a questão central colocada pelo STF, “muitos dos que se posicionaram a favor do uso de células-tronco embrionárias abstiveram-se de respondê-la, não fazendo qualquer menção a ela”, ressalta Martins, que é contrária ao uso de células tronco embrionárias para pesquisas. Durante o debate, as falas dos pesquisadores que defenderam a manutenção do artigo focalizaram outras questões, tais como: o potencial das pesquisas com células-tronco embrionárias; as limitações das pesquisas com células-tronco adultas; na desmistificação de possíveis conseqüências malignas (como câncer) com o uso dessas células; e na ausência de outras perspectivas para tratamento de pacientes, como os que sofreram acidentes.

A pesquisadora da UnB diz não ter dúvidas “de que cada novo indivíduo humano, assim como o de qualquer outra espécie que tenha reprodução sexuada, forma-se na fecundação”. Para ela, o que está em questão não é se esse indivíduo é humano, mas os direitos do ser humano em seus primeiros estágios de vida. “Transformando a questão em biológica, poderíamos ter para ela uma solução técnica. Mas fica evidente que essa solução técnica não existe. Somente assim poderá haver clareza sobre os princípios e valores que estão sendo debatidos e sobre as possíveis conseqüências, atuais e futuras, das decisões que, como sociedade, tomarmos”, defende Martins.

Lygia V. Pereira, professora do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva da Universidade de São Paulo (USP), favorável ao uso de células tronco embrionárias em pesquisas, também acha que houve um erro de foco na convocação da audiência pública. Em depoimento publicado no site do Projeto Ghente Pereira afirma que “não é importante saber quando começa a vida para discutir a constitucionalidade da Lei de Biossegurança. Precisamos esclarecer que tipo de embrião humano estamos tratando na lei”. O argumento da pesquisadora da USP é de que os embriões congelados seriam descartados mais tarde. “Não vamos produzir embriões só para utilização em pesquisa”, complementa. O comércio ilegal de embriões foi uma das preocupações levantadas por Lenise Martins durante a audiência. Para ela, não há garantias de que isso não acontecerá.

Possíveis repercussões

Qualquer que seja a decisão do Supremo, já se anunciam outras possíveis repercussões. O descarte de embriões congelados já é feito pelas clínicas de reprodução assistida, mas se o artigo quinto da Lei de Biossegurança for mantido, essa prática terá mais respaldo para continuar sendo feita, bem como poderão ser abertas brechas para a descriminalização do aborto no país. Entretanto, se o artigo for julgado inconstitucional, poderá abrir precedentes para a proibição e/ou restrição das práticas de reprodução assistida, visto que também são reprovadas por muitos dos que se declaram contrários ao uso de células-tronco embrionárias. Certamente essas questões também devem pesar na decisão judicial que, segundo anunciou o relator, no final da audiência, não será uma decisão entre o “certo e o errado”, mas entre o “certo e o certo”, porque terá que pesar de um lado o direito à vida e de outro os direitos à saúde e à liberdade de pesquisa.

Exercício democrático?

Apesar da imensa maioria dos meios de comunicação no Brasil divulgarem que o debate organizado pelo Supremo foi um exercício direto da democracia, há quem discorde e aponte que este foi apenas um pequeno passo foi dado para uma questão muito complexa. Dalton Luiz de Paula Ramos, professor da Universidade de São Paulo (USP) e Membro da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), assinala que todos os aspectos da realidade precisam ser apresentados para a sociedade, para que ela tenha acesso aos elementos para avaliar e julgar a questão. De acordo com ele, o que aconteceu no STF é um passo importantíssimo, mas não suficiente. “É preciso que outros espaços como esse sejam fomentados”, como a divulgação de novas informações que fomentem a continuação do debate.

Para saber mais:

Projeto Ghente

Células salvadoras ou pequenos brasileiros?

Dança batalha por espaços de pesquisa

Um método de preparação de bailarinas, que utiliza as técnicas de respiração de Martha Graham e as propostas de improvisação e criação de Rudolf Laban, foi desenvolvido e avaliado na Unicamp. Segundo a pesquisa que realizou este trabalho, o método aumenta a qualidade expressiva e artística e quando aplicado em atletas ajuda a prevenir lesões.

A respiração correta favorece a saúde de todos, mas dentro das artes corporais, como a dança, ela é decisiva para a qualidade expressiva e artística. Essa foi a principal conclusão de Patrícia Leal, doutoranda do Instituto de Artes da Unicamp. A pesquisadora acaba de lançar o livro “Respiração e Expressividade – práticas corporais fundamentadas em Graham e Laban”, fruto de sua pesquisa de mestrado, financiada pela Fapesp, em 2006.

Contando com a aplicação de técnicas de respiração e expressão em quatro alunas do último ano da faculdade de dança, Leal propôs uma metodologia para o desenvolvimento do processo criativo, necessário em seu trabalho, unindo cena, coreografia e expressividade. Segundo a dançarina, os questionamentos gerados pela técnica de Martha Graham, um dos maiores nomes da dança moderna norte-americana, foram os motivadores centrais do trabalho. “Quis demonstrar que o uso correto das técnicas de respiração de Graham pode resultar numa expressividade maior”, explica.

Para desenvolver sua técnica, utilizada até os dias atuais, Martha Graham observou os movimentos corporais decorrentes da respiração. A inalação foi associada a um movimento de expansão e liberação do corpo, denominado release. A exalação foi associada a um movimento de contração, denominado contraction. A bailarina resumiu o movimento como sendo uma continuidade entre releases e contrações a partir de um centro motor. A prática dessa técnica permite a integração corporal, pois os exercícios trabalham o corpo como um todo indissociável, sem fragmentar movimentos de braços e pernas em que o centro fica esquecido.

Ao lado da aplicação da técnica de Graham, Leal adotou, para preparação corporal das alunas, exercícios de yoga, alongamento, além de improvisações e criações coreográficas, propostas por Rudolf Laban, teórico representante da dança moderna alemã.

Na pesquisa, pôde-se observar que a respiração adequada facilitou principalmente a fluência do movimento, isto é, a precisão e continuidade do mesmo. “Isso é positivo, pois dá ao intérprete maior capacidade expressiva. A expressividade do dançarino se mede pela passagem por várias nuances qualitativas. No começo, as transições entre um movimento e outro eram abruptas. Com o tempo, houve transições mais suaves, habilidade de emenda dos movimentos. Em outros fatores analisados, como espaço e tempo, também houve mudanças”, explica a pesquisadora. Além da melhora na expressividade, o método, aplicado em atletas, também ajuda a prevenir lesões, compensando relativamente os movimentos repetitivos.

Dança na universidade é recente

Segundo dados da Associação Brasileira de Artistas Cênicos, houve aumento significativo de pesquisas em dança no Brasil nos últimos anos, acompanhando a tendência das pesquisas em arte no geral. Isso se deve, em parte, à notável organização política dos dançarinos, o que facilita a disseminação do conhecimento. “Essa organização partiu necessidade de lutar contra algumas organizações que não consideram a dança como campo de conhecimento, o que é paradoxal em um momento de intensificação de pesquisas. Nossa maior luta é contra o Conselho Federal de Educação Física (CONFEF), que quer impedir que dançarinos possam ensinar dança. Isso só poderia ser feito por professores de Educação Física. Para eles, a dança não é um campo de estudo”, denuncia Strazzacappa.

Ao longo da história é possível verificar mudanças no tratamento e desenvolvimento do corpo para a expressão artística. O balé romântico anterior à dança moderna supervalorizava o decorativo, desumanizando seus protagonistas. No final do século XIX e início do século XX, sobretudo nos EUA e Alemanha, a dança moderna se contrapôs ao academicismo do balé, valorizando não apenas a leveza mas a expressividade. O trabalho com o corpo desce do ideal, das pontas, e valoriza o contato com o chão, ganhando novas propostas estéticas e menos rigidez.

No Brasil, esses ideais tomaram forma nos anos 50, com o fim da guerra. Neste contexto, a presença da dança nas universidades é recente. A primeira faculdade surgiu na Universidade Federal da Bahia, em 1956, fruto de movimentos internacionais para institucionalizar a arte.

Até então, a dança era praticada em conservatórios e pequenos estúdios, onde o bailarino se preparava para o ingresso em uma grande companhia. Na década de 80, surgem cursos superiores de dança na Universidade Federal do Rio de Janeiro e Unicamp. “A dança moderna como pesquisa, difundida nas faculdades, ampliou os olhares, pois sempre somou idéias às danças já existentes. O conhecimento passou a ser institucionalizado, trazendo mudanças nos conceitos de arte. A ênfase é na pesquisa, na corporeidade do brasileiro. A dança contemporânea, que vemos hoje, nasce da dança moderna do começo do século XX, mas com ideais populares e mais recursos tecnológicos”, afirma Márcia Strazzacappa, pesquisadora da Faculdade de Educação da Unicamp e membro do Fórum Nacional de Dança.

Hoje o Brasil conta com 15 cursos de graduação em dança e cerca de 30 cursos de pós. “Esse movimento partiu dos próprios dançarinos, que sentiam necessidade de pensar a dança, relacioná-la com a antropologia, educação e outras áreas de conhecimento”, afirma a pesquisadora.