Aldeia guarani conta sua história em livro bilíngüe

Falar sobre si mesmo, escrevendo sua própria história. Essa é a proposta do livro Nhande reko Ymaguare a’e Aygua (Nossa vida tradicional e os dias de hoje). Cinco autores narram em autobiografias o que é ser guarani, o modo de vida e a realidade da aldeia Tekoa Pyau, localizada no Pico do Jaraguá, na cidade de São Paulo.

Uma nova velha história das terras de Pindorama começa a ser contada pelos descendentes dos povos ancestrais que aqui viviam. O lançamento do livro Nhande reko Ymaguare a’e Aygua (Nossa vida tradicional e os dias de hoje), que retrata a cultura indígena guarani mbya, do tronco lingüístico tupi, é a primeira oportunidade que os índios da aldeia Tekoa Pyau, localizada na base do Pico do Jaraguá, na cidade de São Paulo, têm para contar sua própria história e, a partir dela, a história do seu povo.

O livro é resultado do projeto da antropóloga Marília G. Ghizzi Godoy premiada pelo “Concurso de Apoio a Projetos de Promoção da Continuidade da Cultura Indígena”, da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. Nele, cinco autores fazem pequenas autobiografias para compor retratos do que é ser guarani e contar sobre seus costumes, modo de vida e a realidade da aldeia.

Segundo Tupã, liderança indígena da aldeia Tekoa Pyau , o livro é o resultado da luta indígena pelo direito de escrever sobre si, “livre dos observadores externos”. Assim, a publicação seria, principalmente, uma demonstração de que o índio pode fazer o que não-índio faz: falar sobre si mesmo. Ao falar sobre o gênero autobiográfico, Tupã afirma que “o não-índio conta a história de si, de apenas um, e índio, quando conta sua história, ele conta a história de muitos, do seu povo”. Para ele, o índio poder escrever sobre si é uma grande vitória da resistência indígena sobre séculos de preconceito cultural, sobre “as mentiras que parecem verdades e as verdades que parecem mentira”. Assim, ainda há muito para ser contado sobre a conquista européia do continente americano, sobre a opressão dos índios e sobre a construção do Brasil. E os guarani podem contribuir, segundo Tupã, com essa redescoberta histórica das origens do país, o que ajudaria tanto aos índios quanto aos não-índios a viverem melhor.

A partir da idéia de viver num mundo melhor e de compartilhar seus conhecimentos com os não-índios, é que se tomou a decisão de se fazer um livro bilíngüe (guarani-português). Os moradores da aldeia Tekoa Pyau acreditam que esse conhecimento pode ajudar a preservar a natureza e diminuir o “preconceito” do não-índio sobre seu modo de viver. Porém, para eles, o mais importante é que o livro será distribuído para outras aldeias mbya, o que fortalecerá seus laços étnicos e sua identidade. “Esse livro a gente vai dar para cada aldeia guarani. Como já morei em várias delas, eles vão me reconhecer pela foto e pelo nome e podem ler o que escrevi, em guarani. As crianças também podem aprender”, explica Vitor Soares, um dos autores do livro, que também relata a dificuldade de escrever em guarani, já que sua cultura é baseada na oralidade. Ele precisou recorrer aos mais velhos para lembrar palavras que havia esquecido.

Para a aldeia, a preservação do seu patrimônio lingüístico é fundamental, pois, para os Mbya, a identidade guarani é acima de tudo sua língua: através dela é que os ensinamentos dos mais velhos e o “modo de ser e viver guarani” (nhande reko) podem ser transmitidos. Além disso, muitos Guarani, como Jovelino, professor do coral da aldeia, ainda lembram do período da ditadura militar quando eram proibidos de falar sua língua em público. Por isso, para muitos deles, um livro escrito por suas próprias mãos e em sua própria língua seria algo impensável. Hoje, essa porta, que começa a ser aberta, leva os guarani a sonhar com uma autonomia e participação jamais imaginadas.

Que este seja apenas o primeiro de muitos.

Nhande reko Ymaguare a’e Aygua – Nossa Vida Tradicional e os Dias de Hoje Darci da Silva (Karai Nhe’ery), Fabiana Pires de Lima (Yva Poty), Vitor F. Soares Guarani (Karai Miri), Willian Macena (Vera Miri), Santa Soares (Kerexu Gera Poty) e Marília G. Ghizzi Godoy (coordenação) Editora Terceira Margem 2007

Estudo da comunicação das bactérias pode auxiliar o combate de doenças

Químicos da Unicamp se associam a microbiologistas da USP para descobrir e isolar as substâncias químicas que as bactérias utilizam para se comunicar. O trabalho pode levar a meios de combate a doenças humanas, de animais e até pragas da lavoura.

O estudo dos mecanismos químicos de comunicação entre as bactérias traz uma chance importante de combater doenças e pragas extremamente resistentes, tanto na saúde humana quanto na agricultura e pecuária. É o que afirma o químico Armando Mateus Pomini, doutorando do Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas, Unicamp.

Iniciado em 2005, o projeto de Pomini é pioneiro no Brasil e visa isolar as substâncias químicas que atuam como sinalizadoras (carregam uma informação de comando) em mecanismos comunicativos conhecidos como “quorum sensing” produzidos por bactérias que provocam doenças em plantas como a goiaba e o milho.

O quorum-sensing é uma estratégia eficaz de proliferação das bactérias. Pomini explica que, quando uma bactéria invade um organismo, como por exemplo o corpo humano, existe a tendência de o hospedeiro tentar eliminar ou se proteger deste invasor. Assim, se uma população pequena e frágil de bactérias iniciasse um ataque contra o organismo humano ela seria facilmente combatida. Por isso, esses microrganismos adotaram uma estratégia para avisar a colônia a hora mais propícia para atacar, ou seja, quando a população bacteriana for alta. Nesse momento, as bactérias emitem uma substância química como sinal de “autorização” do ataque. É como se existisse uma voz de comando que dissesse “agora somos numerosos e fortes, vamos atacar!”, essa ordem é a própria substância química responsável pela comunicação.

Segundo Pomini, esse estudo é importante uma vez que, bloqueado o mecanismo de comunicação intercelular, as bactérias se tornam muito mais suscetíveis à ação de medicamentos e bactericidas porque a estrutura organizacional da colônia fica minada.

O grupo de trabalho em quorum sensing é composto por uma equipe multidisciplinar de químicos e microbiologistas. A equipe é liderada pela especialista em química orgânica, Anita Jocelyne Marsaioli, do Instituto de Química da Unicamp e o grupo de microbiologistas é coordenado pelo biólogo Welington Luiz de Araújo, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da USP, em Piracicaba. Araújo é especialista em microbiologia aplicada à agricultura. A partir de amostras fornecidas por Araújo, Pomini as avalia através de um biossensor. A identificação das substâncias é feita principalmente através de técnicas de cromatografia gasosa. O estudo já identificou uma série de compostos químicos da classe das substâncias que usualmente atuam como sinalizadoras químicas.

A interdisciplinaridade é uma das características mais marcantes deste tipo de trabalho. Segundo Pomini, os químicos preenchem um vazio, uma vez que um dos problemas encontrados pelos microbiologistas é fazer o isolamento, síntese e a caracterização estrutural das substâncias que atuam como sinalizadoras químicas. Juntos, os dois grupos de profissionais podem levar a descobertas que bloqueiem a comunicação entre as bactérias e assim garantir mais saúde para pessoas, animais e até plantações.

INPA pesquisa alternativa para resíduo de peixe jogado nos rios

O que acontece com o resíduo do peixe não utilizado pela indústria alimentícia? Pesquisadores do INPA estão voltados para esta questão em busca de alternativas menos poluentes, e produziram uma pesquisa pioneira na utilização de corantes vegetais da Amazônia para o tingimento do couro do peixe matrinxã.

O que acontece com o resíduo do peixe não utilizado na indústria alimentícia? Na época da safra, no Amazonas, estima-se que em torno de três toneladas de pele de peixe são jogadas nos rios por dia. Embora seja um material degradável, quando lançado em enorme quantidade, causa danos ao meio ambiente e desequilibra o ecossistema. Pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) estão voltados para esta questão em busca de alternativas.

A engenheira de pesca Karina de Melo desenvolveu uma pesquisa pioneira na utilização de corantes vegetais da Amazônia para o tingimento do couro do peixe matrinxã, sob orientação de Jerusa de Souza Andrade e Rogério Souza de Jesus, ambos pesquisadores do INPA. A novidade da pesquisa é a utilização de um processo vegetal para tingir o couro do peixe, em lugar dos processos minerais e sintéticos já conhecidos. Com esse novo processo, menos produtos poluentes são jogados no meio ambiente. “O tingimento com corantes vegetais, como por exemplo o urucum, é um processo antigo, que os egípcios e os índios já usavam; daí a idéia de implementar dentro de um curtimento um corante vegetal, natural, que prejudicasse menos o meio ambiente”, diz Melo.

Apesar disso, o procedimento de pesquisa foi realizado em laboratório e não contou com a participação das comunidades locais. Dentre as amostras de plantas que a pesquisadora selecionou, foram escolhidas as que tinham maior concentração de corante, e que fossem mais solúveis em água, resultando no cacauí, de cor azulada/violeta, e no crajiru, de coloração avermelhada.

Experimentos com três tonalidades de couro tingido: 5, 10 e 15% de corante utilizado – crajiru (esq) e cacauí (dir).
Foto: Natacha Veruska

Melo acrescenta que o objetivo da pesquisa foi utilizar uma matéria-prima não comestível. “Os corantes vegetais que existiam – diz ela – eram os utilizados em alimentos, como o urucum e o açafrão. Na literatura pesquisada não há nenhum tipo de corante que não seja comestível; minha idéia era justamente gerar um corante que também fosse resíduo, ou seja, não-comestível”.

A pesquisa realizada por Melo faz parte de uma série de pesquisas do INPA que estão relacionadas. Anteriormente, a engenheira já havia desenvolvido um estudo sobre a transformação de peles de peixes amazônicos em couro. Na ocasião, realizou o curtimento do peixe matrinxã, orientada por Rogério Souza de Jesus e José Jorge Rebello.

Rebello, técnico em Curtimento do INPA, desenvolvia por sua vez um trabalho com o resíduo do peixe jogado nos rios do Amazonas oriundo tanto de indústrias, como do próprio local de desembarque do peixe, onde há alguns pontos de comercialização e nos quais já retiram a pele do peixe. “No caso da indústria, existe um maior aproveitamento do resíduo do peixe: a cabeça pode virar resíduo para a pesca marinha e, as vísceras, sabão ou ração para peixe”, explica Jesus, que acrescenta a diferença no caso da comercialização realizada pelos chamados “peixeiros” de Manaus. “Eles fazem a limpeza do peixe no local do desembarque e todo o resíduo, como pele, cabeça, escamas, gordura, vísceras é jogado no rio, gerando grande uma poluição no local. A pesquisa de Rebello trabalhou inicialmente com o que é chamado de “pele de peixe liso” e, mais recentemente, com os pescados oriundos da piscicultura, como o matrinxã e o tambaqui. A pesquisa do tingimento do couro de peixe faz parte deste projeto e dá continuidade ao trabalho realizado para o curtimento do matrinxã.

Melo aponta que o couro do matrinxã não é tão resistente como o couro “de peixe liso”, mas, por ser mais macio, pode ser usado para fazer bolsas, pulseiras de relógio, acessórios e vestimentas. Já os corantes extraídos do cacauí e do crajiru podem ser utilizados também na indústria têxtil. Na São Paulo Fashion Week e na Fashion Rio da primavera/verão 2008, além dos tecidos tecnológicos, que têm propriedades como proteção contra os raios ultravioletas, ou absorção de suor, também ganharam destaque esse ano os tecidos ecológicos como o algodão orgânico, o couro vegetal, a fibra de juta, a palha, o reciclável poliéster japonês e ainda as cuecas chamadas “ecológicas”, produzidas com fibras de bambu em substituição à fibra sintética. Os eventos apontam uma nova tendência de mercado na qual o couro do matrinxã poderia ser incluído.

O processo desenvolvido por Karina está sendo protegido, de acordo com Rogério Souza de Jesus, pela Divisão de Propriedade Intelectual de Negócios do INPA e até que os interessados em desenvolver industrialmente esse tingimento entrem em contato com o instituto, a pesquisa fica guardada. Jesus explica que a pesquisa de Karina mostrou que existe a potencialidade da utilização de corantes naturais para o tingimento de couro de matrinxã; a partir daí, quando uma empresa tiver interesse, deverá trabalhar com a pesquisadora para chegarem a um produto direcionado ao nicho de mercado que a empresa quer atingir e que possa ser comercializado.

A pesquisa de Melo foi apresentada como dissertação de Mestrado no INPA em maio de 2007 e financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM).