Democracia e mercado polemizam debate sobre qualidade no ensino

A última revista Estudos Avançados da USP, e um seminário organizado na Unicamp pelo Nepp, discutiram este mês a qualidade da educação básica no Brasil. Entre os pesquisadores não há unanimidade sobre o assunto. Enquanto alguns relacionam qualidade a ideais humanistas e republicanos, para outros essa noção está ligada a ideais tecnocráticos e mercantis.

Educação de qualidade. Anseio dos brasileiros há muito tempo, prioridade nos discursos de governos e governantes. É também preocupação de cientistas. Este mês uma publicação e um seminário discutiram propostas para elevar a qualidade da educação básica no Brasil: o mais recente número (60) da revista Estudos Avançados da USP e o seminário organizado pelo Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (Nepp), ocorrido no dia 07 de setembro, no Instituto de Economia da Unicamp. O que os pesquisadores entendem por qualidade, no entanto, não é unanimidade. Enquanto para alguns ela está relacionada a ideais humanistas e republicanos, como democracia e cidadania, para outros está ligada a ideais tecnocráticos e mercantis, como boa gestão e desenvolvimento econômico.

José Sérgio F. de Carvalho, professor de Filosofia da Educação da Faculdade de Educação da USP, é um dos adeptos da primeira noção. Na resenha que fez do livro A qualidade do ensino na escola pública, de Rui Beisiegel, referiu-se à qualidade do ensino como um conceito polissêmico, que pode incorporar diversas interpretações, mas que o importante é que não seja entendido como algo fixo e imutável. Para ele, assim como para o autor do livro resenhado, qualidade na educação hoje é diferente do que era nos anos 50 e 60. Nessa época, entravam nos ginásios, correspondentes hoje à segunda fase do ensino fundamental, menos de um terço dos alunos que concluíam o primário. A qualidade da educação estava relacionada ao seu caráter seletivo e elitista.

Aluno da cidade de Santos (SP) mostra palavras que escreveu.
Foto: Moacyr Lopes Junior/Folha Imagem 29/05/2002. Disponível na revista Estudos Avançados da USP, n.º 60.

Hoje já não faz sentido a busca nostálgica por esse ideal de qualidade, explica José Sérgio: “com a universalização do ensino fundamental, o público e os agentes da escola são outros, assim como suas condições de funcionamento, suas funções e seus objetivos”. O desafio hoje é a democratização do acesso aos bens culturais comuns presentes nas disciplinas, saberes e valores da escola. O professor defende um conceito de qualidade do ensino público voltado para o atendimento dos alunos das camadas mais pobres. Isso requer uma renovação de conceitos, procedimentos, critérios e práticas pedagógicas e avaliativas, afirma ele.

Esta renovação é outro problema. Dois colaboradores da Estudos Avançados concordam com a perspectiva que evidencia a democratização social e defendem como primordial para a qualidade do ensino público a participação popular: José Clóvis de Azevedo, coordenador do Centro Universitário Metodista IPA e ex-secretário da educação de Porto Alegre (1997-2000), e Glaura Vasquez de Miranda, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e ex-secretária de educação de Belo Horizonte (1993-1996).

Para ambos, qualidade do ensino público significa garantir não apenas o acesso de todos à escola, mas o direito de todos de aprender conteúdos e valores significativos, que não seriam aqueles homogeneizados e cristalizados nos currículos tradicionais. As propostas de Miranda e Azevedo, baseadas em grande medida nas experiências por eles analisadas, respectivamente, da Escola Plural, de Belo Horizonte, e da Escola Cidadã, de Porto Alegre, valorizam idéias e valores como democracia, cidadania, direito, participação, política, crítica, liberdade, autonomia, ética e defesa da vida.

Atividades de alunos da Escola Plural (BH).
Foto: Marly Aparecida Alves Rezende/SMED-PBH. Disponível na revista de Estudos Avançados da USP, n.º 60.

 

A fala de Maria do Pilar Almeida e Silva, secretária de educação básica do Ministério da Educação (MEC), durante o seminário do Nepp, também evidenciou a idéia da escola e da qualidade da educação como direitos a serem reforçados. “No PDE [Plano de Desenvolvimento da Educação] há uma visão muito clara: a escola é um direito. Tem que ser garantido o direito de aprender para todos e para cada um”, ressaltou, e concluiu: “Recuperar a visão do direito é o nosso grande desafio”.

Já Sofia Lerche Vieira, da Universidade Estadual do Ceará (UECE) e secretária de educação básica do Ceará, avalia em seu texto na revista Estudos Avançados que, na década de 90, “a democratização da gestão não se traduziu em melhorias de indicadores de resultados de aprendizagem de estudantes” naquele estado. Preocupada com uma gestão que propicie o sucesso escolar, ela vê como fatores decisivos: a busca da gestão por resultados (e não de processos); o estabelecimento de uma cultura de avaliação sobre o sistema de ensino; e a consideração do desempenho escolar como indicador de sucesso.

Compartilham opinião semelhante Maria Helena Guimarães de Castro, secretária da educação do estado de São Paulo, e Mariza Abreu, secretária de educação do Rio Grande do Sul. As duas foram palestrantes no seminário do Nepp. “Educação básica de qualidade não é questão só de qualidade de vida e cidadania, mas de desenvolvimento econômico e de condições de competitividade – e isso não é ruim”, exaltou Abreu, na parte da manhã, e complementou: “É preciso recursos em quantidade suficiente e bem geridos”.

Durante a tarde, Maria Helena Castro contrapôs-se ao pesquisador Jorge Abrahão Castro, do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), que defendeu o maior comprometimento do Produto Interno Bruto (PIB), em termos percentuais, com o financiamento da educação. Para ela, “o gasto não é a variável mais importante para o desempenho. É preciso ter isso em vista para não incorrer no risco de aumentar os recursos sem saber como gastá-los bem”. Currículo, avaliação e responsabilização das escolas foram os pontos enfatizados por Castro. “É preciso sinalizar claramente para as escolas e professores até onde eles devem procurar chegar”, enfatizou ainda, quanto à definição de parâmetros curriculares.

Simon Schwartzman, sociólogo e presidente do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (IETS), foi na mesma direção de Castro em sua fala. Para ele, as iniciativas tomadas nos anos 90, de orientar a política educacional a partir de indicadores, foram um avanço. Mas ainda é um problema estabelecer metas adequadas aos conteúdos curriculares com base nos indicadores. Ele defende o estabelecimento de currículos mais estritos, a cultura da avaliação e a avaliação por desempenho dos professores, que de acordo com ele deve ser feita “mesmo que seja uma transferência da cultura empresarial para a escola”.

Simon Schwartzman, a secretária estadual da educação de São Paulo, Maria Helena Castro, o coordenador do Nepp, José Roberto Perez e o pesquisador do IPEA, Jorge Abrahão Castro, participam de seminário sobre educação.
Foto: Carolina Raquel

 

O contraste nos discursos dos representantes governamentais, e nas análises de pesquisadores, expressa embates, dilemas e desafios que formam a noção de qualidade da educação no Brasil. Discursos que orientam diferentes rumos na elaboração das políticas públicas educacionais. Na análise de José Clóvis de Azevedo, são dois os modelos em disputa: da escola cidadã e da “mercoescola”.

Soro antiofídico não é eficaz para todas as espécies de cobras coral

Pesquisadores da Unicamp e do Butantan constatam a ineficiência do soro comercializado contra os efeitos letais da picada de certas corais e tentam desenvolver um antiveneno mais eficaz

Você está atravessando uma fazenda a pé e recebe uma picada de uma cobra coral. Você corre para o hospital mais próximo e recebe a tempo o respectivo soro prescrito para o veneno desse réptil. Você estará a salvo, certo? A resposta, no entanto, é: depende. O biólogo Valdemir Abreu, doutorando do Departamento de Farmacologia da Unicamp, constatou que o soro vendido comercialmente é ineficaz contra a mortal ação paralisante das toxinas da Micrurus altirostris, uma das cerca de vinte espécies diferentes de cobras coral encontradas no Brasil.

Supervisionados pela bióloga Léa Rodrigues Simioni, professora associada do departamento, os experimentos de Abreu mostraram que seria preciso aumentar a proporção do soro mais de treze vezes, em relação à quantidade prescrita pelo fabricante, para que tivesse a sua eficácia garantida contra a ação paralisante do veneno da altirostris, espécie do sul do país. A prescrição padrão recomenda a aplicação de 1,5 ml de soro para cada 1 mg de veneno inoculado. Os testes de Abreu mostraram, no entanto, que a neutralização completa da ação paralisante para essa espécie só ocorre na proporção 20 para 1 (20 ml de soro para 1 mg de veneno).

A ineficácia do soro antiofídico contra a letalidade das toxinas da altirostris já havia sido demonstrada pela equipe da bióloga Maria de Fátima Furtado, pesquisadora do Instituto Butantan, em São Paulo. Isso acontece porque o soro é feito a partir de um coquetel de toxinas retiradas de serpentes do mesmo gênero, mas de diferentes espécies. No caso das corais, do gênero Micrurus, apenas os venenos das duas espécies mais comuns (Micrurus frontalis e Micrurus corallinus) entram na composição da mistura de venenos (pool) usada na fabricação do soro. O pool é injetado, em pequenas quantidades, em cavalos, dos quais o sangue rico em anticorpos formados em resposta às injeções de veneno é retirado para fabricação do soro.

Para ampliar a faixa de eficácia do soro, Maria de Fátima junto com a bióloga Denise Tambourgi, também pesquisadora do Butantan, estão estudando a neutralização da letalidade de venenos de nove espécies de coral. Um trabalho bastante difícil, como explica Maria de Fátima, “Os animais e os respectivos venenos são de difícil obtenção e ainda temos que obter mais informações para propor mudanças no pool”.

Em busca da neutralização da ação paralisante do veneno da altirostris, Abreu tentou usar o veneno para imunizar coelhos, mas, segundo ele, “o soro obtido não foi mais eficiente do que o antiveneno comercial”, por isso esse veneno não deverá se incluído no pool.

Abreu observou, ainda, que a um tipo de antídodo, a neostigmina é ineficaz perante o veneno da altirostris, o que torna ainda mais importante garantir a eficiência do soro antiofídico.

Seminário amplia discussão latino-americana sobre tecnologia social

Relevância da tecnologia na diminuição das assimetrias sociais dos países latino-americanos, princípios e características que devem definir uma tecnologia voltada para inclusão, políticas públicas necessárias para concretização de ações que aliem tecnologia e inclusão foram alguns dos pontos debatidos por pesquisadores, gestores e representantes de entidades civis de países latino-americanos durante o “Seminário tecnologia para inclusão social e políticas públicas na América Latina”, que aconteceu entre os dias 24 e 25 no Rio de Janeiro.

Qual a relevância da tecnologia na diminuição das assimetrias sociais dos países latino-americanos? Quais os princípios e características que devem definir uma tecnologia voltada para inclusão? Quais as políticas públicas necessárias para concretização de ações que aliem tecnologia e inclusão? Essas foram algumas das questões debatidas por pesquisadores, gestores e representantes de entidades civis de países latino-americanos durante o “Seminário tecnologia para inclusão social e políticas públicas na América Latina”, que aconteceu entre os dias 24 e 25 no Rio de Janeiro.

A realização do evento está inserida no contexto das discussões iniciadas no Brasil no inicio desta década sobre a tecnologia social (TS) ou tecnologia para inclusão social. Desde então, o “movimento da TS” tem se ampliado com estabelecimento de uma rede de discussão e ação que envolve pesquisadores, representantes do governo e organizações civis.

Os debates do primeiro dia estiveram centrados na discussão do “marco analítico-conceitual”, de possíveis metodologias para pesquisa sobre TS e no debate sobre a importância da inserção das tecnologias sociais como eixo de políticas públicas estruturantes. Segundo Luis Fernandes, presidente da Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), os projetos nacionais que definiram a trajetória dos países latino-americanos foram marcados por governos autoritários e pelo foco no crescimento econômico. “Hoje sabemos que é fundamental combinar promoção do desenvolvimento com distribuição de renda. Isso nos obriga a conceber a inovação de outra maneira, de uma forma mais ampla, que coloque a tecnologia para inclusão como um eixo para se pensar em políticas públicas estruturantes que aliem desenvolvimento, consolidação democrática e inclusão”.

Ainda com respeito à inserção da TS na agenda pública, Hernán Thomas, pesquisador da Universidade Nacional de Quilmes, ressaltou a importância estratégica de pensar a tecnologia para inclusão como um fator chave para o desenvolvimento futuro da América Latina. “Entender como a tecnologia incide nos processos de inclusão e exclusão social tem sido uma temática tratada de forma marginal, mesmo sendo uma dinâmica fundamental para entender o contexto dos problemas estruturais latino-americanos”.

Para Henrique Novaes, pesquisador do Grupo de Análise de Política de Inovação (Gapi) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o momento de crise atual pode significar uma oportunidade para colocar o tema da tecnologia, na agenda pública e dos movimentos civis, dentro de uma lógica vinculada às necessidades dos empreendimentos solidários. “No entanto, a TS somente deixará de ser algo exótico quando entrar na agenda pública e for tomada como algo de fato ligado a um novo modelo de desenvolvimento”, ressaltou Novaes.

Outro ponto destacado durante o Seminário foi o papel da comunidade de pesquisa na construção de mediações entre as necessidades sociais e produção científico-tecnológica. “Não é viável falar em tecnologia para inclusão sem discutir a necessidade de produção pelas universidades públicas de um conhecimento na direção da transformação social”, ressaltou Renato Dagnino, pesquisador do Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp.

Os debates também trouxeram um panorama sobre o papel dos organismos internacionais e das Organizações Não Governamentais (ONGs) para a difusão e desenvolvimento das tecnologias sociais da América Latina. Os participantes destacaram o papel a Rede de Tecnologia Social (RTS) no Brasil e de estudos de experiências de sucesso como as desenvolvidas no campo da agroecologia e agricultura integrada, habitação popular urbana e tecnologias voltadas para empreendimentos cooperativos e solidários.