O Parque Natural Regional do Pantanal (PRNP), uma iniciativa inspirada no modelo francês de Parques Naturais Regionais, revelou-se muito mais complexo do que o modelo original poderia prever, conclui a geógrafa Icléia Albuquerque de Vargas em sua tese de doutorado defendida em fevereiro pela Universidade Federal do Paraná. A pesquisadora estudou o PNRP com base nas categorias “território”, “identidade”, “paisagem” e “governança” e verificou que, embora haja pontos de convergência entre as condições francesas e brasileiras, o PNRP possui características muito particulares, que exigem um tratamento especial.
O Parque Natural Regional do Pantanal (PRNP), uma iniciativa inspirada no modelo francês de Parques Naturais Regionais, revelou-se muito mais complexo do que o modelo original poderia prever, conclui a geógrafa Icléia Albuquerque de Vargas em sua tese de doutorado defendida em fevereiro pela Universidade Federal do Paraná. A pesquisadora estudou o PNRP com base nas categorias “território”, “identidade”, “paisagem” e “governança” e verificou que, embora haja pontos de convergência entre as condições francesas e brasileiras, o PNRP possui características muito particulares, que exigem um tratamento especial.
Somente na França operam mais de quarenta parques naturais regionais, também presentes na Espanha, Polônia, alguns países da África, Guiana Francesa, Chile e o PNRP no Brasil. A concepção do PNRP desenvolveu-se ao longo de mais de vinte anos, mas o parque foi oficialmente implementado em 2002, com o apoio do governo do estado, da ONG Sociedade de Defesa do Pantanal (Sodepan) e da Federação de Parques Naturais Regionais da França e o financiamento da União Européia e do próprio governo do Mato Grosso do Sul. Hoje há mais três projetos de implementação de parques naturais regionais no Pantanal: Porto Murtinho, Caracol e Nabileque. O PNRP compreende a totalidade da sub-bacia hidrográfica do Rio Negro (integrante da Bacia Hidrográfica do Alto Paraguai), com uma superfície de aproximadamente seis milhões de hectares, ou cerca de 20% do Pantanal.
A pesquisadora, especializada na área de sociedade e meio ambiente, ressalta que o Parque Natural Regional não é simplesmente uma unidade de conservação ambiental, mas reúne proprietários rurais que devem obedecer um conjunto de normas de utilização do território, definido em assembléias. A filosofia francesa de preservação do meio ambiente está presente, ao lado da realização de produção econômica e da proteção à cultura local, à educação, à saúde, à assistência social e à preservação das tradições. O objetivo é aumentar a renda do produtor pantaneiro com manutenção da sustentabilidade da região.
Os parques prevêem a definição de um produto principal a ser explorado economicamente, os chamados produits de terroir, ou seja, o produto com identidade territorial. Enquanto na França os parques produzem queijos, vinhos, embutidos, o PNRP elegeu como seu produto de terroir o vitelo (bezerro abatido com 8 a 12 meses de vida) orgânico, por receber uma alimentação sem agrotóxicos e tratamentos de saúde homeopáticos ou fitoterápicos. O vitpan, como é chamado esse vitelo pantaneiro, tem uma carne muito mais tenra e pode atingir, portanto, melhores preços no mercado. Há também outros projetos desenvolvidos no PNRP, como o turismo sustentável, a apicultura, o artesanato, a escola pantaneira e o manejo da fauna silvestre, este último com o objetivo de minimizar as perdas dos produtores de gado decorrentes da ação das onças da região que, na falta de suas presas naturais (pequenos mamíferos), se alimentam de bezerros.
Obstáculos Porém, o PNRP apresenta problemas que impedem sua plena eficácia, a começar pela inexistência da Carta do Parque, o documento-mestre que estabelece o parque e suas diretrizes de gestão global para o território. “Há um forte conflito de interesses entre os fazendeiros, técnicos brasileiros e franceses e políticos, enquanto os trabalhadores rurais, pescadores e ribeirinhos são pouco considerados. O problema de governança talvez seja o maior problema do PNRP, que a França já superou”, afirma vargas. Além disso, há a questão da identidade do pantaneiro, muito marcada pelo zoomorfismo (atribuição de características animais aos homens) e pelo antropomorfismo (atribuição de características humanas aos animais). Para a pesquisadora, “essa aproximação entre homem e mundo natural revela uma interação muito forte dos pantaneiros com o meio ambiente e lhes confere um ’saber ambiental’ que deve ser considerado e valorizado”.
O fato de o Pantanal ter sido patrimonializado e considerado uma reserva da biosfera em virtude de sua rica biodiversidade não impede a existência de conflitos com o governo. Recentemente, houve a retomada da intenção por parte do governo e de produtores sucro-alcooleiros de se permitir a instalação de usinas de açúcar e álcool no Pantanal, mas após muitas discussões o governo recuou da decisão. Outra proposta do governo, que tem preocupado muitos pescadores da região, é a de proibir a pesca profissional e artesanal, sem propostas de alternativas para a população que vive destas atividades.
Vargas destaca ainda divergências entre os propósitos do PNRP, de conservação da atividade pecuária, e de algumas ONGs, que defendem a retirada do gado para preservar a vegetação local. Alguns trabalhos científicos defendem a hipótese de que a retirada do gado leva ao crescimento da vegetação que, nos períodos de seca, poderia se constituir em uma massa propícia para a combustão. Dessa forma, seria necessário manter o boi no pasto no Pantanal, pois ele, ao impedir o crescimento desordenado da vegetação nativa, é responsável pela manutenção da paisagem. “A idéia do ‘boi-bombeiro’ contradiz a ação de algumas ONGs internacionais que hoje adquirem terras no Pantanal e suspendem a pecuária, com o objetivo de preservação do ambiente natural”, diz Vargas.
Apesar da complexidade do Pantanal e dos problemas de adequação ao modelo francês de Parques Naturais Regionais, a pesquisadora acredita que é possível conservar o modelo e adaptá-lo às condições do local, considerando, sobretudo, o saber ambiental de todos os agentes e não apenas dos fazendeiros.