Micróbios na comida: quem se preocupa com isso?

Tantos são os riscos a considerar ao escolher alimentos, que alguns consumidores acabam se esquecendo da preocupação básica: a contaminação por micróbios prejudiciais à saúde. É a constatação de um estudo realizado pela pesquisadora Maria da Conceição Pereira da Fonseca, do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação da Unicamp.

Tantos são os riscos a considerar ao escolher alimentos, que alguns consumidores acabam se esquecendo da preocupação básica: a contaminação por micróbios prejudiciais à saúde. É a constatação de um estudo realizado pela pesquisadora Maria da Conceição Pereira da Fonseca, do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação (Nepa), ligado à Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA) da Unicamp.

O estudo se baseou em entrevistas realizadas durante o mês de junho de 2001 e respondidas por 75 homens e 83 mulheres, maiores de 15 anos, abordados em locais de grande circulação pública no município de Campinas (SP). Das 20 características dos alimentos consideradas prejudiciais à saúde, os itens mais citados pelas 158 pessoas que participaram da pesquisa foram a gordura (24,3%) e o colesterol (11,3%).

Quase metade dos entrevistados tinha cursado pelo menos o ensino médio, ou seja, teoricamente teria, em algum momento de sua vida, estudado sobre os riscos de contaminação por microorganismos. No entanto, o que se verificou foi que muitos sequer lembraram deles na hora de responder a pesquisa. Na realidade, o grau de escolaridade pouco influenciou a opinião dos entrevistados. Apenas sutis diferenças foram observadas: os que possuíam apenas o nível fundamental citaram o sal como elemento capaz de prejudicar a saúde, enquanto os de maior escolaridade mostraram-se inquietos com a questão dos conservantes e corantes.

Na pesquisa, foram citados quatro grupos distintos de riscos contidos nos alimentos: nutrientes, componentes biológicos, componentes químicos e aspectos gerais. O estudo demonstrou que o ideal seria que o casal provedor da casa fosse junto às compras, pois homens e mulheres analisam e valorizam diferentes aspectos dos alimentos: elas, os nutrientes e componentes; e eles, os agrotóxicos, os conservantes, corantes e os produtos químicos em geral. Foi deles também a maior atenção à qualidade (45,7% contra 3,6% das respostas femininas) e à higiene e à sanidade dos alimentos (25,7% contra 8,4%).

As preocupações mudam também de acordo com a faixa etária: de 25 a 40 anos, por exemplo, a higiene e a sanidade dos alimentos são os itens mais valorizados. Acima de 55 anos, as pessoas atentam mais à gordura e ao colesterol, obviamente por estarem mais suscetíveis aos seus efeitos.

E de acordo com o poder aquisitivo, quanto maior o nível de renda, maior a atenção à segurança dos alimentos e aos perigos químicos. Estudos internacionais apontam que, em países desenvolvidos, os consumidores preocupam-se mais com os componentes nutricionais dos alimentos. Já no Brasil, relata Fonseca, outros estudos detectaram maior interesse do consumidor, especialmente os menos abonados, pelo preço dos produtos alimentícios do que pelo teor nutricional, qualidade e segurança dos alimentos.

Os comportamentos verificados poderiam explicar recorrência de crianças que chegam aos consultórios médicos com vômito, diarréia, febre e dor de cabeça. “Esses sintomas podem ter sido causados por alimentação e muitas vezes a população nem sabe que o fator que originou isto foi um alimento”, relata a pesquisadora. Também justificariam os 177 surtos de origem alimentar ocorridos em Campinas, que foram objeto de estudo realizado na cidade pelo Instituto Adolfo Lutz no período de janeiro de 2000 a dezembro de 2004.

O trabalho do Adolfo Lutz consistiu na análise de 232 amostras de alimentos, das quais 110 apresentaram microorganismos prejudiciais à saúde e/ou indicadores de contaminação fecal. Foram encontrados Staphylococcus aureus em 17%, Bacillus cereus em 11%, Salmonella Enteritidis em 9%, Clostridium perfringens em 4,5% e Salmonella Typhimurium em 0,5%.

Os alimentos mais freqüentemente contaminados foram os produtos de confeitaria, em especial os produzidos com ovos. Em 61% dos surtos, foram realizados inquéritos epidemiológicos, revelando 3.836 pessoas doentes e duas mortas. Os sintomas mais freqüentes foram diarréia (27,4%) e vômito (21%). Mas as enfermidades de origem alimentar podem causar, além de febre, calafrios e cefaléia, até perturbações neurológicas, alérgicas, renais, do sangue e do fígado, pelas potentes toxinas produzidas pelos microorganismos, capazes de deixar seqüelas e até morte.

De acordo com o estudo do Adolfo Lutz, doenças de origem alimentar são associadas à perda de trabalho e constituem grande problema em todo o mundo: são a principal causa de óbitos infantis e a segunda de óbitos em geral, perdendo apenas para doenças cardiovasculares. A Organização Mundial da Saúde estimou que de 1986 a 1989, as doenças de origem alimentar foram a segunda maior causa de morte na Europa, superadas apenas por infecções respiratórias. A higiene inadequada das mãos foi apontada como responsável pela maioria das doenças originadas por alimentos.

Educação popular

A contaminação por ovos, por exemplo, é um problema tão sério que o Serviço de Inspeção e Segurança Alimentar dos Estados Unidos, criou, entre outros, um programa específico de orientação sobre como lidar com eles. Entre as recomendações está a de comprá-los dentro do período de validade, com as cascas limpas e inteiras (para evitar infiltração de bactérias); refrigeração no ponto-de-venda; e que o consumidor vá direto para casa colocá-los no lugar mais frio da geladeira, dentro da embalagem, que ajuda a protegê-los melhor. Conservados assim, duram até três semanas. Lavar as mãos antes de lidar com eles e todos os utensílios com sabão e água quente fazem parte do rol de instruções.

No Brasil, a orientadora da tese de Maria da Conceição Fonseca, professora Elisabete Salay, ligada ao Departamento de Alimentos e Nutrição da Unicamp, destaca que as ações ainda são incipientes: o Ministério da Saúde desenvolveu, em 2005, um guia alimentar, ainda pouco divulgado, onde foi incluído apenas um capítulo sobre a qualidade sanitária.

Bonecas de cerâmica revelam patrimônio imaterial dos Karajá

A análise das bonecas Karajá, além de retratar as características sócio-culturais desse povo, revela a importância de uma releitura do acervo indígena encontrado nos museus. O simples catálogo dos artefatos indígenas como arte figurativa ou estatuária não reflete seu verdadeiro significado cognitivo, dentro de sua percepção de vida e de mundo. Nessa direção, a pesquisa de Sandra Lacerda Campos chama atenção para o patrimônio imaterial velado em museus.

Aos cinco anos de idade, a menina Karajá ganha uma família de bonecas de cerâmica. Em uma sociedade ocidental, o conjunto seria como o “primeiro material didático”. Mas para os Karajá, esses artefatos vão além disso e preparam a criança para realizar a passagem do mundo infantil para o adulto, transmitindo os valores e costumes da tribo. A percepção do papel desses objetos na sociedade Karajá só foi possível a partir da visão inovadora da pesquisa da antropóloga do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP, Sandra Lacerda Campos. Em seu trabalho, a pesquisadora defende que a análise dessas peças, a partir das pinturas e adereços nelas contidos, revela diferentes aspectos da organização cultural, uma vez que simbolizam os diversos planos da visão de mundo desse grupo.

O povo Karajá, que é o único a produzir bonecas em cerâmica no Brasil, pertence a uma nação de língua macro-jê e vive no Parque Nacional do Araguaia, às margens do rio que deu nome à reserva indígena. Até Campos se questionar sobre a forma de circulação das bonecas na própria cultura Karajá, elas eram consideradas pelos museólogos como meros artefatos lúdicos.

A antropóloga partiu de um levantamento do repertório dos motivos gráficos, da pintura, das incisões e dos adereços presentes nas bonecas e associou-os aos motivos impressos na pintura corporal indígena Karajá. Dessa forma, pôde compreender a representação simbólica dos vários planos da cosmologia dessa cultura e de que forma ela é transmitida às crianças por meio desse artefato.

Algumas das bonecas que transmitem a cultura Karajá.
Foto: Sandra Lacerda Campos

 

Campos explica que a partir da análise de uma família de bonecas é possível perceber nove fases da vida de um indivíduo Karajá, seis delas apenas na infância: a criança recém nascida; o bebê de colo; quando pode sentar-se; engatinhar, andar e quando entra na “idade escolar”. “O recém nascido, por exemplo, recebe um banho de urucum para extrair o cheiro do parto. Esse costume é ensinado para as crianças porque no conjunto de bonecas, há uma pequena que é toda vermelha”, esclarece a antropóloga. Além disso, na pintura corporal Karajá são representadas todas as informações sobre o indivíduo: idade, estado civil, função na tribo e talento. “As crianças aprendem a identificar todas essas informações na iconografia das bonecas – diz Campos – É possível identificar quais mulheres são artesãs e/ou dançarinas, por exemplo”. Entre as bonecas, também há representação de indivíduos velhos, arqueados ou com os seios caídos. Segundo Campos, os Karajá também preparam as crianças para a velhice mostrando que essa é apenas mais uma fase da vida.

Até o período da iniciação – passagem do mundo infantil para o adulto – não há distinção entre meninos e meninas na tribo. Nessa fase, as crianças apenas brincam e aprendem. Embora sejam as meninas que ganham a família de bonecas, os meninos, por sua vez, reconhecem toda simbologia pelo contato com as meninas.

DESDOBRAMENTOS DO CONTATO

A pesquisa sobre a interpretação do patrimônio imaterial do grupo Karajá, a partir de suas bonecas de cerâmica, surgiu de uma cena de bastidores: ao realizar a re-documentação das coleções Karajá do acervo do MAE – que é um dos maiores e mais antigos do Brasil, composto por cerca de quatro mil peças – Campos encontrou uma boneca de pano, trajada com cinco saias e um lenço preto na cabeça, que estava registrada como pertencente a esse grupo indígena. Após a confirmação de que era um artefato Karajá, apesar do material utilizado para confecção ser diferente do usual, ficou clara para Campos a influência do contato com a sociedade ocidental – tópico também explorado na pesquisa.

Além das manifestações culturais de um povo passarem por processos dinâmicos, mesmo sem o contato com outra sociedade, o estudo das coleções do MAE mostra que a produção artesanal Karajá vem sofrendo transformações em sua tipologia e em seus padrões de confecção desde o estabelecimento da relação com os ibéricos. Segundo Campos, nas bonecas antigas, por exemplo, as formas são roliças e os cabelos são moldados com cera de abelha. Na produção moderna, as bonecas ganham braços, pernas alongadas e detalhes que dispensaram o uso da cera de abelha. Contudo, os motivos gráficos e os adornos se mantêm fiéis aos tradicionais.

Bonecas modernas: relações de inovação e tradição refletidas na confecção das bonecas de cerâmica Karajá.
Foto: Sandra Lacerda Campos

 

Atualmente, para fins comerciais, as artesãs produzem peças que reproduzem o cotidiano, principalmente a rotina diária: processamento da mandioca (atividade feminina) ou caça e pesca (atividade masculina). Nas bonecas são aplicados os padrões ornamentais, que seguem os mesmos utilizados na pintura corporal, incluindo a marca tribal omarury (mito sol/lua) em seus rostos. Contudo, “possivelmente em função de sua experiência inicial com os ibéricos, os Karajá possuem seus ‘segredos’ e – na direção de preservar a sua identidade – produzem bonecas diferenciadas para circularem na aldeia. Essas são mais parecidas com as antigas, que têm como característica a ausência dos braços”, explica Campos. É nesse contexto que a pesquisadora defende que a confecção das bonecas expressa, além das relações entre inovação e tradição na produção da variação e da dinâmica culturais, a adaptação aos parâmetros econômicos locais.

As bonecas exibem “profundas preocupações estéticas, ao mesmo tempo em que conciliam traços de representações de ordem histórica, social e cultural”, argumenta Campos. Além disso, “os motivos reproduzidos tanto nas bonecas, quanto na cestaria, na cerâmica e na pintura corporal representam um reflexo da concepção de si próprios quanto indivíduos ou grupo”, completa a pesquisadora.

“Muitos argumentam que índio não é mais índio porque usa roupa e telefone celular. Isso não é verdade”, defende Campos. Em contato com a civilização ocidental desde a época das expedições bandeirantes, o povo Karajá mantém sua identidade cultural por um método eficaz: educação.

Língua indígena do Amazonas ganha dicionário

Com o objetivo de preservar uma das línguas indígenas que corre o risco de desaparecer, a ONG Saúde Sem Limites, em parceria com o antropólogo Renato Athias, da Universidade Federal de Pernambuco, o lingüista Henri Ramirez, da Universidade Federal de Rondônia, e a comunidade local elaboraram um dicionário da língua dos Hupd’äh, uma etnia de 1600 indivíduos que vivem na Terra Indígena Alto Rio Negro, na bacia do Rio Uaupés, no Amazonas.

O rápido desaparecimento de línguas indígenas brasileiras explica por que muitos pesquisadores estão correndo para documentá-las e registrá-las. Para se ter uma idéia, das mais de 170 línguas faladas no Brasil, somente cerca de 25 possuem algum tipo de registro. Com o objetivo de preservar uma das línguas que corre o risco de desaparecer, a ONG Saúde Sem Limites, em parceria o antropólogo Renato Athias, da Universidade Federal de Pernambuco, o lingüista Henri Ramirez, da Universidade Federal de Rondônia, e a comunidade local elaboraram um dicionário da língua dos Hupd’äh, uma etnia de 1600 indivíduos que vivem na Terra Indígena Alto Rio Negro, na bacia do Rio Uaupés, no Amazonas.

“O principal objetivo da produção do dicionário foi possibilitar a educação específica e diferenciada para os Hupd’äh e assim garantir que a educação escolar indígena seja de fato efetuada”, diz Athias. Atualmente, as pessoas em idade escolar freqüentam escolas Tukanas, um grupo étnico vizinho, mas Athias acredita que a partir do dicionário será possível desenvolver uma educação Hupd’äh.

Como a etnia Hupd’äh ocupa um lugar baixo na escala hierárquica da região, a língua é desvalorizada e considerada “feia” pela demais etnias e por isso corria o risco de desaparecer. “O dicionário valoriza a língua e estabelece um elemento poderoso no fortalecimento da identidade do grupo”, diz o antropólogo. Isso quer dizer que além de ser um objeto voltado para educação, o dicionário também tem um papel político importante.

Para Athias, a introdução da escrita em uma língua, que foi durante muito tempo transmitida pela oralidade, tem elementos positivos, como a preservação da língua e a possível educação na língua nativa. Mas por outro lado, pode trazer riscos de descaracterização da cultura da etnia. “Muitos missionários a utilizam, por exemplo, para traduzir os evangelhos e provocar mudanças nos comportamentos. Mas se for bem utilizada, a língua pode ser inclusive uma arma”, afirma.

De acordo com o professor de letras da USP e pesquisador de línguas indígenas, Waldemar Ferreira Netto, é difícil prever os riscos envolvidos na introdução da escrita, mas os benefícios para a etnia são evidentes. “A tendência dos povos indígenas é ser bilíngüe. Se eles não aprenderem a escrita na língua nativa, aprenderão em outra língua, então a função do dicionário é possibilitar a educação na língua-mãe”, diz.

De acordo com o antropólogo Mauro Almeida, da Universidade Estadual de Campinas, o surgimento de publicações voltadas para os grupos étnicos nos últimos anos é uma demanda das próprias etnias que querem preservar a língua. “Além da demanda por dicionários, existe também um interesse por publicações de mitos”, diz Almeida. O antropólogo ressalta ainda que, em muitos casos, a preocupação dos índios é de resgatar uma língua que está sendo esquecida pela etnia.

Construção coletiva Por mais de três anos, os pesquisadores viajaram freqüentemente para a região do Alto do Rio Negro com o objetivo de encontrar índios que fossem bilíngües (aproximadamente 40 Hupd’äh falam português como segunda língua). Durante essas viagens, os pesquisadores analisaram como os índios constroem frases, usam verbos e compõem o alfabeto. Após isso, em um trabalho coletivo, os pesquisadores e os Hupd’äh iniciaram a construção do dicionário. “Nós nos reunimos nas aldeias para escolher quais símbolos escritos serviriam para representar a língua e as letras escolhidas foram as do alfabeto português”, diz Athias.

Atualmente 42 Hupd’äh estão fazendo cursos de preparação para o magistério e quando se formarem professores poderão ensinar as crianças na língua nativa, integrando a etnia no sistema nacional de ensino.

Segundo Athias, inicialmente o dicionário será utilizado somente para a educação indígena, mas no futuro haverá uma edição que será lançada comercialmente. De acordo com Netto, há pouco interesse das editoras brasileiras em publicar dicionários indígenas, e também pouco incentivo do governo nesse sentido. “É mais fácil publicar fora do país do que aqui”, diz. De acordo com Netto, dicionários para a educação indígena são importantes porque fortalecem a auto-estima dos índios. “Esse tipo de dicionário contribui muito para a construção da identidade da etnia porque a língua é um marcador identitário muito poderoso”, afirma Netto.

Segundo a ONG Saúde Sem Limites, a produção do dicionário foi financiada pela organização não governamental espanhola Manos Unidas e Cooperación Al desarrollo Generalitat Valenciana.