O Conselho Federal de Medicina vota até o mês de novembro a resolução que diz que é ético e permitido que o médico limite ou suspenda o tratamento médico e procedimentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, se ele ou seu representante legal manifestar essa vontade. O documento vem sendo discutido, desde 2004, entre os conselhos regionais de medicina, o Ministério Público, médicos e representantes da sociedade. A versão final será concluída até o final deste mês e levada para votação. Se aprovada, a resolução se tornará uma norma de conduta profissional.
Clóvis Francisco Constantino, vice-presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM), diz que a resolução não trata da eutanásia, mas sim de reconhecer os limites que têm os tratamentos em alterar o prognóstico dos pacientes. Proibida por lei no Brasil e aceita legalmente em poucos países, como o Uruguai, Holanda e Bélgica, a eutanásia consiste em uma ação intencional com a finalidade de abreviar ou interromper a vida de um paciente. Para que seja caracterizada a eutanásia é necessário que exista a intenção e o efeito da ação.
A tradição da escola hipocrática, que rege a conduta médica desde o século V a.C., estabelece que os médicos e outros profissionais da saúde se dediquem a proteger e preservar a vida, condenando a eutanásia e o suicídio assistido. O juramento de Hipócrates deixa bem claro esse posicionamento quando diz “eu não darei qualquer droga fatal a uma pessoa, se me for solicitado, nem sugerirei o uso de qualquer uma deste tipo”.
Essa resolução, entretanto, não trata disto, mas sim de evitar prolongar desnecessariamente a vida de pacientes com sofrimento e sem alternativas terapêuticas disponíveis, como argumenta José Roberto Goldim, biólogo e sócio fundador da Sociedade Rio Grandense de Bioética. “Ao contrário de ir contra a tradição hipocrática, a norma a reforça. Os médicos hipocráticos não praticavam eutanásia, como está explícito no próprio juramento, mas tinham como primeiro dever, frente aos pacientes, de os ajudar e estabelecer uma relação de auxílio, evitando causar danos”, diz.
Em 1980, o Vaticano publicou uma declaração sobre a descontinuação do tratamento fútil, dizendo que não existe justificativa moral para a sua manutenção. Seguindo essa orientação, o Papa João Paulo II preferiu não receber tratamento em sua fase terminal. Para Goldim, esse documento da Igreja católica, assim como os de inúmeras outras denominações religiosas, facilitou a discussão deste tema pela sociedade.
O objetivo, segundo o vice-presidente do CFM, é transformar esse momento em um momento de conforto. “Ao médico não é ensinado a lidar com um momento como esse, não existe a cultura de reconhecer a infalibilidade das possibilidades”, aponta. A resolução orienta como procedimento médico desde o reconhecimento desse momento, à conversa com a família e com o paciente, até as alternativas de cuidados paliativos para promover o máximo de conforto sem deixá-lo sofrer. “O médico não comete nenhum ato ilícito se deixar de utilizar métodos que posterguem uma morte que já é iminente e inevitável”.
Constantino dá o exemplo do trabalho realizado nas Unidades de Tratamentos Intensivos, cada vez mais eficientes e que, freqüentemente, conseguem reverter quadros graves de acidentes, enfartes. “Mas não é o caso das doenças crônicas degenerativas e incuráveis na fase de terminalidade. Não é um caso de prolongar a vida e, sim, postergar a morte com um sofrimento desnecessário”.
O artigo 6º. do Código de Ética Médica prega que o médico deve ter respeito absoluto pela vida humana, atuando sempre em benefício do paciente. Determina também que ele não deve jamais utilizar seus conhecimentos para o extermínio do ser humano, para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade ou ainda para gerar sofrimento físico ou moral.
“A Ética e a Lei convergem na maioria dos casos. A Lei é proposta para regrar a vida em sociedade e a Ética busca justificativas para a sua adequação. Algumas vezes esta justificativa aponta para a inadequação de uma Lei, surgindo então um conflito ético-legal. O que não é o caso, pois não há previsão legal para este tipo de situação”, explica Goldim. Para ele, a vantagem do processo de preparação dessa resolução é que uma discussão que há muito ocorre no âmbito privado da relação médico-pacientes e médico-familiares de paciente está sendo levada ao público. “A sociedade tem o direito de discutir e se manifestar respaldando ações ou buscando entender melhor estas questões. O importante é esclarecer adequadamente o que está sendo discutido”.