Ler a bula de um medicamento não é uma tarefa fácil. Além da letra minúscula, que dificulta a leitura, especialmente pela população mais idosa, os termos técnicos utilizados nos pequeninos papéis que acompanham os medicamentos dificultam, e muito, a compreensão das recomendações e instruções de uso. Porém, esses são de longe os menores problemas apresentados pelos impressos: o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) divulgou recentemente a análise da bula de 19 medicamentos vendidos no Brasil e constatou que todas apresentam problemas sérios, como ausência de dados importantes ou fornecimento de informações confusas.
O órgão analisou as bulas entre outubro e novembro de 2007, com o objetivo de verificar se os fabricantes forneciam informações claras e completas e, assim, cumpriam as exigências da legislação brasileira. O Idec também comparou as bulas de genéricos e seus medicamentos de referência, e de medicamentos nacionais e norte-americanos – nos dois casos as bulas apresentavam diferenças significativas. O instituto constatou várias irregularidades e violações ao direito do consumidor à informação, o que, segundo o Idec, pode comprometer a saúde do usuário.
Um dos problemas mais freqüentes encontrados durante a pesquisa foi a falta de orientação clara quanto a dosagens. Dos 19 medicamentos analisados, 11 não trazem informações sobre o que o paciente deve fazer caso se esqueça de tomar uma dose. Deve aumentar a próxima dose ou mudar seu horário? Ou ainda, deve ignorar o esquecimento e tomar a próxima dose normalmente? Por outro lado, o instituto aponta que algumas das informações a respeito das dosagens podem levar à automedicação: a bula de um dos antidepressivos analisados orienta: “Se você não responder à dose de 50 mg, pode aumentar a dose”. “A bula tem que ser o mais detalhada possível, com o máximo de informações para esclarecer as dúvidas dos pacientes”, explica Marcos Tadeu Nolasco da Silva, professor da Unicamp e Secretário Executivo de Comitê Assessor do Ministério da Saúde. Mas alerta: “Porém, o paciente tem que ter discernimento ao usar essa informação. Informações claras e completas não excluem a necessidade de consultar um profissional”.
Quanto à diferença entre as bulas, o Idec aponta falhas como a de um genérico de um antidepressivo que não traz o alerta de que pacientes jovens podem ter comportamento suicida durante seu uso – informação que seu medicamento de referência destaca. Neste caso, ocorre uma confusão nas determinações da própria Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), órgão que regulamenta os medicamentos brasileiros. A Anvisa possui uma regra mais atualizada e um pouco mais exigente para os medicamentos de referência do que a que determina as diretrizes para os genéricos – daí o descompasso entre as bulas. Já as diferenças entre as bulas brasileiras e as norte-americanas, o caso mais emblemático é o dos antiinflamatórios: nos Estados Unidos, as bulas desses medicamentos alertam para o risco de morte por problemas cardiovasculares durante o tratamento; já no Brasil, os medicamentos similares não trazem esse aviso.
Quando se fala sobre os avisos quanto às reações adversas – uma das informações principais em qualquer bula – o problema maior é a própria regulamentação da Anvisa. De acordo com o Idec, a agência só obriga que as bulas dirigidas aos consumidores indiquem as reações “mais importantes”, no entanto, não define exatamente o que considera “mais importante”.
Os medicamentos selecionados para a análise foram anti-hipertensivos, vasodilatadores, anti-reumáticos, antiinflamatórios, ansiolíticos, antidepressivos e hipolipemiantes (que reduzem os níveis de colesterol no sangue). O Idec justificou a seleção afirmando que esses são os tipos de medicamentos mais consumidos pelos idosos, população crescente no país – hoje, já são 16 milhões -, e forma o grupo que faz mais uso de medicamentos que a média da população. Todos os fabricantes que tiveram as bulas analisadas pelo instituto responderam aos questionamentos do Idec e comprometeram-se a reavaliarem seus impressos.
Confira a lista dos medicamentos analisados pelo Idec
Automedicação: uma prática perigosa
A automedicação é um fenômeno bastante discutido na área médica, e tido como especialmente preocupante no Brasil, onde é uma prática muito comum. De acordo com dados da Associação Brasileira das Indústrias Farmacêuticas (Abifarma), cerca de 80 milhões de pessoas são adeptas da automedicação no país. A conseqüência dessa prática é outro grande número: 30% das internações por intoxicação no Brasil são causadas por mau uso dos medicamentos, segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) – o que coloca os medicamentos em primeiro lugar entre os agentes causadores de intoxicação no país.
“Muitas pessoas não fazem idéia do quanto é arriscada a utilização indiscriminada dos analgésicos e antiinflamatórios, porque a maioria é de prescrição livre. O ácido acetilsalicílico (AAS) indicado nos casos de reumatismo e para prevenir problemas cardíacos, se usado na vigência de certas viroses infantis com o objetivo de reduzir a febre, pode precipitar uma lesão hepática grave e culminar em um quadro de encefalopatia”, apontam Ana Letícia Alessandri e Kênia Pompermayer Bosco, da Fundação Comunitária de Ensino Superior de Itabira (Funcesi), no artigo “Os Perigos da Automedicação“, publicado no Diário de Itabira em julho do ano passado.
A facilidade de acesso e a falta de rigor no controle da venda dos medicamentos são dois fatores apontados por especialistas como grandes contribuidores para a automedicação. A não exigência de receita para venda de remédios na grande maioria das farmácias e a venda ilegal de medicamentos, especialmente através da internet, agravam o quadro. “Um dos grandes complicadores é que as pessoas no Brasil têm um acesso muito aberto aos medicamentos. Em países da Europa, por exemplo, é muito difícil você encontrar uma farmácia na rua, porque o controle sobre a venda de medicamentos é muito rigoroso. No Brasil, você encontra uma farmácia em cada esquina, há uma facilidade de acesso”, diz Nolasco.
Entre os perigos da automedicação, a OMS aponta: diagnosticar a doença incorretamente; escolher uma terapia inadequada; retardar o reconhecimento da doença, com a possibilidade de agravá-la; tomar medicamentos de modo errado; usar uma dosagem insuficiente ou excessiva; utilizar o medicamento por período curto ou prolongado demais; tornar-se dependente do medicamento; possibilitar o aparecimento de efeitos indesejáveis graves; não reconhecer riscos farmacológicos especiais; desconhecer as possíveis interações com outros medicamentos, além de possibilitar o aparecimento de reações alérgicas.