Aos cinco anos de idade, a menina Karajá ganha uma família de bonecas de cerâmica. Em uma sociedade ocidental, o conjunto seria como o “primeiro material didático”. Mas para os Karajá, esses artefatos vão além disso e preparam a criança para realizar a passagem do mundo infantil para o adulto, transmitindo os valores e costumes da tribo. A percepção do papel desses objetos na sociedade Karajá só foi possível a partir da visão inovadora da pesquisa da antropóloga do Museu de Arqueologia e Etnologia (MAE) da USP, Sandra Lacerda Campos. Em seu trabalho, a pesquisadora defende que a análise dessas peças, a partir das pinturas e adereços nelas contidos, revela diferentes aspectos da organização cultural, uma vez que simbolizam os diversos planos da visão de mundo desse grupo.
O povo Karajá, que é o único a produzir bonecas em cerâmica no Brasil, pertence a uma nação de língua macro-jê e vive no Parque Nacional do Araguaia, às margens do rio que deu nome à reserva indígena. Até Campos se questionar sobre a forma de circulação das bonecas na própria cultura Karajá, elas eram consideradas pelos museólogos como meros artefatos lúdicos.
A antropóloga partiu de um levantamento do repertório dos motivos gráficos, da pintura, das incisões e dos adereços presentes nas bonecas e associou-os aos motivos impressos na pintura corporal indígena Karajá. Dessa forma, pôde compreender a representação simbólica dos vários planos da cosmologia dessa cultura e de que forma ela é transmitida às crianças por meio desse artefato.
Campos explica que a partir da análise de uma família de bonecas é possível perceber nove fases da vida de um indivíduo Karajá, seis delas apenas na infância: a criança recém nascida; o bebê de colo; quando pode sentar-se; engatinhar, andar e quando entra na “idade escolar”. “O recém nascido, por exemplo, recebe um banho de urucum para extrair o cheiro do parto. Esse costume é ensinado para as crianças porque no conjunto de bonecas, há uma pequena que é toda vermelha”, esclarece a antropóloga. Além disso, na pintura corporal Karajá são representadas todas as informações sobre o indivíduo: idade, estado civil, função na tribo e talento. “As crianças aprendem a identificar todas essas informações na iconografia das bonecas – diz Campos – É possível identificar quais mulheres são artesãs e/ou dançarinas, por exemplo”. Entre as bonecas, também há representação de indivíduos velhos, arqueados ou com os seios caídos. Segundo Campos, os Karajá também preparam as crianças para a velhice mostrando que essa é apenas mais uma fase da vida.
Até o período da iniciação – passagem do mundo infantil para o adulto – não há distinção entre meninos e meninas na tribo. Nessa fase, as crianças apenas brincam e aprendem. Embora sejam as meninas que ganham a família de bonecas, os meninos, por sua vez, reconhecem toda simbologia pelo contato com as meninas.
DESDOBRAMENTOS DO CONTATO
A pesquisa sobre a interpretação do patrimônio imaterial do grupo Karajá, a partir de suas bonecas de cerâmica, surgiu de uma cena de bastidores: ao realizar a re-documentação das coleções Karajá do acervo do MAE – que é um dos maiores e mais antigos do Brasil, composto por cerca de quatro mil peças – Campos encontrou uma boneca de pano, trajada com cinco saias e um lenço preto na cabeça, que estava registrada como pertencente a esse grupo indígena. Após a confirmação de que era um artefato Karajá, apesar do material utilizado para confecção ser diferente do usual, ficou clara para Campos a influência do contato com a sociedade ocidental – tópico também explorado na pesquisa.
Além das manifestações culturais de um povo passarem por processos dinâmicos, mesmo sem o contato com outra sociedade, o estudo das coleções do MAE mostra que a produção artesanal Karajá vem sofrendo transformações em sua tipologia e em seus padrões de confecção desde o estabelecimento da relação com os ibéricos. Segundo Campos, nas bonecas antigas, por exemplo, as formas são roliças e os cabelos são moldados com cera de abelha. Na produção moderna, as bonecas ganham braços, pernas alongadas e detalhes que dispensaram o uso da cera de abelha. Contudo, os motivos gráficos e os adornos se mantêm fiéis aos tradicionais.
Atualmente, para fins comerciais, as artesãs produzem peças que reproduzem o cotidiano, principalmente a rotina diária: processamento da mandioca (atividade feminina) ou caça e pesca (atividade masculina). Nas bonecas são aplicados os padrões ornamentais, que seguem os mesmos utilizados na pintura corporal, incluindo a marca tribal omarury (mito sol/lua) em seus rostos. Contudo, “possivelmente em função de sua experiência inicial com os ibéricos, os Karajá possuem seus ‘segredos’ e – na direção de preservar a sua identidade – produzem bonecas diferenciadas para circularem na aldeia. Essas são mais parecidas com as antigas, que têm como característica a ausência dos braços”, explica Campos. É nesse contexto que a pesquisadora defende que a confecção das bonecas expressa, além das relações entre inovação e tradição na produção da variação e da dinâmica culturais, a adaptação aos parâmetros econômicos locais.
As bonecas exibem “profundas preocupações estéticas, ao mesmo tempo em que conciliam traços de representações de ordem histórica, social e cultural”, argumenta Campos. Além disso, “os motivos reproduzidos tanto nas bonecas, quanto na cestaria, na cerâmica e na pintura corporal representam um reflexo da concepção de si próprios quanto indivíduos ou grupo”, completa a pesquisadora.
“Muitos argumentam que índio não é mais índio porque usa roupa e telefone celular. Isso não é verdade”, defende Campos. Em contato com a civilização ocidental desde a época das expedições bandeirantes, o povo Karajá mantém sua identidade cultural por um método eficaz: educação.