Globalização altera relações produtivas em empresas de linha branca

Como as relações de trabalho e a organização produtiva se alteraram nas empresas de eletrodomésticos a partir do fenômeno da globalização? Essa foi a principal questão do projeto que integrou a Unicamp, Facamp, UFSCar e órgãos internacionais. A pesquisa abrangeu diversos países: China, Taiwan, Coréia do Sul, Turquia e Brasil, entre 2001 e 2006.

Como as relações de trabalho e a organização produtiva se alteraram nas empresas de eletrodomésticos de linha branca a partir do fenômeno da globalização? Essa foi a principal questão do projeto que integrou a Unicamp, Facamp, UFSCar e universidades dos países participantes. A pesquisa, que teve financiamento da Fapesp e do Economic and Social Research Council, do Reino Unido, abrangeu empresas de diversos países: China, Taiwan, Coréia do Sul, Turquia e Brasil, entre 2001 e 2006. A intenção, com a pesquisa já concluída, é lançar um livro sobre o assunto com dados sobre mudanças nas relações de trabalho e comportamento gerencial do setor.

De acordo com Leda Gitahy, pesquisadora do Departamento de Política Científica e Tecnológica Unicamp e uma das coordenadoras do projeto, foram examinadas e comparadas as estratégias gerenciais e as respostas dos trabalhadores em um setor que sofreu intenso processo de internacionalização e reestruturação produtiva, a partir da década de 90. Em cada uma das três empresas de eletrodomésticos pesquisadas, o grupo entrevistou cerca de 50 gerentes e 50 trabalhadores.

A globalização alterou o universo da produção. No Brasil, isso foi mais perceptível com a abertura da economia e inovações tecnológicas. O setor de linha branca era pouco internacionalizado, com forte participação nacional. Em 1993, a sueca Eletrolux fechou um acordo de transferência de tecnologia com a Refripar, então proprietária da marca Prosdócimo. Dois anos depois, houve a compra definitiva. Em 1994, a Bosch Siemens adquiriu a Continental e, em 1997, a americana Whirpool assumiu o controle da Multibrás, Brascabo e Embraco. Atualmente, cerca de 85% do faturamento do setor é controlado pelas grandes líderes mundiais. “A entrada dessas empresas no Brasil deu-se pela estratégia das multinacionais para reduzir custos e ampliar o desenvolvimento de fornecedores. Estavam de fato interessadas na conquista de um novo e amplo mercado, com cadeia produtiva bem estruturada”, analisa Adriana Cunha, pesquisadora da Facamp e participante do projeto.

Entre as conseqüências desse processo, é possível apontar mudanças nas relações produtivas, redução de emprego e maior produtividade. Ângela Araújo, do Departamento de Ciência Política da Unicamp, afirma que o processo de reestruturação trouxe, de modo geral, melhor ambiente de trabalho e espaço físico, rodízio de atividades repetitivas, além de diminuição dos níveis hierárquicos entre gerentes e operários de chão de fábrica. “Por outro lado, as mudanças intensificaram o trabalho de todos, que têm mais metas a cumprir, maior jornada de trabalho e horas extras, com salários reduzidos. Isso traz doenças físicas e psicológicas, além extrema preocupação com o mercado de trabalho”, afirma.

Na maioria das empresas, há envolvimento crescente dos trabalhadores em programas participativos que se refletem na sua maior capacidade de tomar decisões do trabalho, associada a novos métodos de gestão. A análise das respostas obtidas nas empresas mostra que a satisfação está associada às perspectivas de carreira. Em todos os países que fizeram parte do estudo, os trabalhadores consideram que não existe segurança no emprego e que as perspectivas dependem de esforços individuais e de investimentos em sua própria educação, assumindo o discurso da empregabilidade, principalmente entre os mais jovens. “O importante para eles é estar empregado, independente de onde e como, pois a instabilidade é global. Entre os anos 80 e 90, havia sempre uma justificativa para o desemprego, mas hoje a instabilidade é assumida como característica intrínseca”, opina Gitahy.

Na pesquisa, também se pôde verificar a terceirização de serviços e a precarização das condições de trabalho. De outro lado, empresas de alta tecnologia empregam satisfatoriamente poucos trabalhadores. “Eu não vejo esse fenômeno da reestruturação com otimismo, pois houve aumento de desemprego, precarização dos já existentes e redução salarial. Isso é mundial, inclusive nos países ricos, aumentando a desigualdade e concentração de renda. Com isso, pode haver crise, já que o empobrecimento da população prejudica o consumo desses produtos”, afirma Araújo.

Segundo a pesquisadora, sem os movimentos sociais, sindicais e políticos, a situação dificilmente será revertida. Para Adriana Cunha, mesmo considerando os problemas observados, a linha branca no Brasil teve mudanças positivas a partir da globalização. “A América Latina apresenta grande potencial de crescimento no setor. O Brasil se destaca na produção de eletrodomésticos tradicionais, como fogões e refrigeradores, o que revela sua importância individual no contexto da indústria mundial de linha branca”, afirma Cunha.

Papel social do programa do biodiesel está ameaçado, dizem especialistas

Concentração da produção de matéria-prima nas mãos de grandes produtores pode levar o programa do diesel vegetal a descumprir os seus objetivos sociais. Perfil do novo setor começa a se delinear no Brasil e os grandes produtores de soja buscam compensar a queda do dólar com incentivos para a produção de biodiesel.

O programa feito para incentivar a produção de diesel a partir de óleos vegetais e promover a agricultura familiar pode seguir o caminho do etanol e colocar a produção e os rumos do setor nas mãos dos grandes empresários. Essa é a opinião dos economistas Francisco Alves, do Departamento de Engenharia de Produção da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), e Luiz Antonio Prado, ex-coordenador de projetos do Banco Mundial.

Recém-nascido em 2003, engendrado pelo governo federal, o Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel (PNPB) encarnou as esperanças de desenvolver a agricultura familiar, em especial a do pequeno produtor do sertão nordestino, região própria para o cultivo de oleaginosas matérias-primas do biocombustível. Uma legislação específica foi criada para alimentar a demanda por biodiesel e favorecer o pequeno produtor.

Para aquecer o consumo, a Lei 11.097/05 determina que a partir de janeiro de 2008 todo o diesel comercializado no país terá de conter 2% de óleo vegetal (B2). Essa medida garantirá o consumo de 840 milhões de biodiesel por ano, movimentando R$ 1,5 bilhão. Para que parte desse dinheiro fique nas mãos do pequeno produtor rural, foi criado o Selo Combustível Social. Recebem essa chancela as indústrias que compram matérias-primas da agricultura familiar. Além de ser um diferencial de marketing, o selo dá acesso a vantagens tributárias como a redução nas alíquotas do PIS/Pasep e Cofins.

Alves, da UFSCar, porém, vê uma mobilização dos grandes sojicultores do Sul, Sudesde e Centro-Oeste para abocanhar uma fatia do mercado. “Os grandes plantadores de soja estão enfrentando prejuízos, especialmente com a queda do dólar,” revela o pesquisador. “Eles têm grande poder político e pressionam o governo por um programa específico para o biodiesel da soja”. A queda de braço entre o biodiesel familiar do Norte e Nordeste e o da agroindústria da soja já começaria em desvantagem. “O acesso que os grandes produtores têm a fontes de financiamento, por exemplo, não se compara ao crédito concedido aos pequenos,” explica o economista.

Os agroindustriais ganhariam a batalha mesmo fornecendo uma matéria-prima pouco produtiva. A soja está entre os grãos que menos produzem óleo, apenas 17%, perdendo apenas para o algodão que rende 15%. Em comparação, pode-se extrair 20% de óleo da semente de dendê e acima de 40% trabalhando com mamona ou amendoim. O campeão em aproveitamento, porém, é o babaçu com 66% de óleo em sua biomassa.

Para aumentar a disparidade, a própria produção agrícola familiar do Norte e Nordeste não tem promovido a inclusão social almejada pelo governo. Foi o que descobriu o economista Luiz Antonio Prado, doutor em biologia e ecologia humana pela Faculdade de Medicina de Paris. Grandes grupos empresariais internacionais já estão adquirindo propriedades rurais brasileiras e submetendo os pequenos produtores às suas condições. “O Proácool também foi vendido como um programa para desenvolver a pequena agricultura”, lembra Prado, “Porém, quando chegava na usina, o camponês ouvia a conversa: ’volte daqui a três dias’. A sua colheita, então, depreciava e perdia qualidade e valor” comenta. Pressões desse tipo fizeram a maioria das pequenas propriedades serem vendida aos grandes canavieiros.

Ex-coordenador de projetos do Banco Mundial, Prado identificou um movimento internacional de empresas e até de governos de países ricos para garantir lugar na produção de biocombustíveis no Brasil. “A Inglaterra anunciou a criação de um fundo com o objetivo de adquirir 51% das usinas brasileiras produtoras de etanol”, conta o economista, “e até a Secretaria de Agricultura do governo americano chegou a recomendar em seu site as melhores regiões no Brasil para se adquirir terras para a produção de energia de origem vegetal”, revela. O cenário produtivo agrícola de oleaginosas por aqui começa a ser povoado por gigantes, o que ameaça a existência dos pequenos.

Para Prado, todo o PNBP teria que ser repensado. “Não faz sentido colocar biodiesel em toda a produção nacional de diesel para compor o B2, se temos que transportá-lo por grandes distâncias. Seria muito mais racional e viável que as regiões produtoras do biocombustível consumissem o B100 (100% vegetal)”, analisa. Esse mesmo combustível poderia ser utilizado na geração de energia elétrica em regiões isoladas. Essas localidades não estão conectadas a linhas de distribuição de energia elétrica e dependem de geradores a óleo diesel. “A maior parte dessas comunidades está em regiões de incidência de babaçu, o que justificaria a construção de usinas locais de biodiesel”, comenta Prado. O investimento resultaria em economia, já que as comunidades isoladas dependem da Conta de Consumo de Combustíveis, uma subvenção que atingiu R$ 4,5 bilhões em 2006, 25% maior que em 2005, segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).

“Queimar mamona como diesel é torrar dinheiro”

O uso da mamona como uma das matérias-primas do biodiesel é outro erro grave do PNPB, na opinião de Luiz Antonio Prado. O óleo de mamona é bastante valorizado no mercado internacional. Por sua resistência a grandes variações de temperatura e pressão, ele é utilizado como aditivo em combustíveis de aviação e até em motores espaciais da Nasa, a agência espacial norte-americana, além de ter aplicações em próteses e na indústria cosmética. O valor estratégico do produto faz a Casa Branca manter uma Comissão Nacional do Óleo de Mamona, instituição que garante abastecimento e preços favoráveis aos Estados Unidos. O Brasil perdeu para a China e para a Índia a posição de maior produtor mundial desse óleo e irá piorar sua situação nesse mercado se continuar a queimá-lo como um componente do biodiesel, o que seria um “desperdício absurdo”, segundo Prado.

A despeito da maré contrária, o governo acena com dados relevantes, como o emprego atual de 200 mil famílias camponesas na produção de sementes para o biodiesel. Se o programa vai continuar cumprindo esse papel social, é outra história. Mini-usinas de álcool já eram projetadas na década de 1970 para serem geridas por cooperativas de pequenos agricultores. Porém, só os gigantes permanecem hoje no setor sucro-alcooleiro.

“O Proálcool foi criado para salvar a lavoura dos usineiros da crise do açúcar no final dos anos 1970”, lembra Francisco Alves. Na opinião do economista da UFSCar, tirar as rédeas do setor do biodiesel das mãos dos grandes agricultores não será tarefa tranqüila. “Só uma mobilização da sociedade civil poderia mudar esse quadro”, acredita.

Ciência legitima exposição de cadáveres humanos

A OCA em São Paulo recebeu no início deste mês a exposição “Corpo humano: real e fascinante” do médico Roy Glover. A mostra expõe cadáveres humanos e é inspirada na exposição artística Körperwelten, dos anos 90, concebida pelo alemão Gunther von Hagens. Entretanto, as reações do público às duas mostras foram bastante diferentes. A mostra de Glover é muito elogiada e bate recordes de visitas, já a de Hagens recebeu duras críticas.

No início deste mês começou na OCA do Parque do Ibirapuera, em São Paulo, a exposição Corpo humano: real e fascinante, sob direção do médico Roy Glover, professor de anatomia e biologia celular da Universidade de Michigan. Diferente das exposições convencionais em vários aspectos, a mostra apresenta cadáveres reais e alguns órgãos do corpo humano que podem ser manuseados pelo público. A mostra é inspirada na exposição artística Körperwelten (Mundos do Corpo), exibida nos anos 90 e concebida pelo alemão Gunther von Hagens, da Universidade de Heidelberg, na Alemanha. Entretanto, as reações do público às duas mostras foram bastante diferentes. A mostra de Glover é muito elogiada e bate recordes de visitas, já a de Hagens recebeu duras críticas.

Corpos se apresentam como em aula de anatomia, na mostra de Roy Glover
Fonte: www.exposicaocorpohumano.com.br

 

Mas por que será que o alemão foi duramente criticado ao expor suas idéias, e o médico Roy Glover tem o apoio da sociedade? Para Elenise Pires de Andrade, que concluiu seu doutorado pela Faculdade de Educação da Unicamp, isso acontece pois há uma sutil diferença nos discursos e nas palavras que tentam apresentar e explicar cada uma das exposições. Glover carateriza sua exposição como uma mostra de caráter científico e educacional que pretende divulgar os mecanismos do complexo funcionamento do corpo. Em entrevista à Folha de São Paulo, no dia 28 de fevereiro, Glover disse que sua mostra “é científica e não artística”. Para Andrade, essa afirmação do médico “carrega tantos acordos e jogos de poder morais que mais mereceria estar em um livro de alguma religião do que em compêndios artísticos ou científicos”. A legitimidade alcançada por Glover em sua exposição se “apóia em todo o peso atribuído à ciência atualmente em nossa sociedade, como portadora de todas as certezas e soluções para os complexos problemas da humanidade”, analisa Andrade.

Homens galopam em cavalo, na exposição do alemão Gunter von Hagens
Fonte: www.auladeanatomia.com

 

A exposição do alemão von Hagens, entretanto, tinha apenas objetivos artísticos e estéticos. Embora tenha sido responsável pela criação e aperfeiçoamento do processo chamado de plastinação dos corpos – que ao dar maior plasticidade aos corpos, facilita o manuseio e a exposição sem deixar cheiros – a exposição dos corpos como “peças de arte” recebeu inúmeras críticas ligadas à ética e a legalidade de suas atividades, e levou Hagens a abandonar a cátedra de Heidelberg. As críticas, que partiram de setores da Igreja e da sociedade e revelavam a inquietação dos espectadores diante da “banalização da morte e do corpo”, expressas pelo alemão. Pode-se entender, portanto, as razões que levaram Hagens a ganhar o apelido de “Dr. Morte”, uma referência ao seu “cemitério ilegal”. Andrade comenta que a polêmica envolvendo as exposições de von Hagens circula em torno da já apresentada “intocabilidade do corpo humano”. Na opinião dela, o ponto mais polêmico das obras do artista é o rompimento da fronteira da pele que expõe a tensão intimidade-público. “O médico alemão nos provoca e inquieta com outros lugares, outras posturas não comuns para corpos mortos. Estariam mesmo mortos no sentido de ausência de comunicação e produção de sentidos?”, questiona Andrade.

Poderia a mostra Real e fascinante controlar as sensações dos espectadores com as palavras que a caracterizam: científica e educativa? Para Andrade, “a realidade do fascínio do corpo humano é explodida em ambas as produções. Glover pode querer propagar seus supostos valores éticos no tratamento com os corpos ’mortos’, mas a irrupção dos sentidos quando nos deparamos com as imagens é a mesma da exposição do alemão”, argumenta e, ainda, complementa: “a diferença está simplesmente nas palavras que tentam apresentar, significar e explicar o inenarrável – a experiência do encontro com esses corpos-objetos”.