A epilepsia é a condição neurológica grave mais comum que existe. Paradoxalmente, é cercada por mitos que rotulam e discriminam os portadores dessa condição. Uma pesquisa realizada na Unicamp propõe uma maneira de avaliar o tamanho e os estragos do estigma da epilepsia sobre a qualidade de vida e a saúde dessas pessoas, iniciativa inédita no Brasil e no mundo: a escala de estigma na epilepsia. Por meio de questões e cálculos estatísticos, a ferramenta mede a percepção que a sociedade tem do estigma na epilepsia. O trabalho representa a terceira fase do Projeto Demonstrativo Brasileiro para a Campanha Global “Epilepsia fora das sombras”, que teve início em 1997, liderada pela Organização Mundial da Saúde, International Bureau of Epilepsy e International League Against Epilepsy.
O Projeto Demonstrativo teve início em 2002, com o levantamento epidemiológico da epilepsia. Em seguida, profissionais de saúde e professores fizeram cursos de atualização e capacitação. A escala de estigma na epilepsia colabora para a identificação da percepção do estigma na comunidade. Com base nela, é possível fazer um estudo sobre como a doença é vista pela sociedade e pelo próprio paciente e, então, buscar métodos mais eficazes que minimizem o preconceito sobre ela.
O estigma é a situação de discriminação criada pela sociedade. “Para que exista a percepção do estigma, é preciso que haja o estímulo como por exemplo as crises epilépticas, que são percebidas de uma maneira específica por cada pessoa. O paciente, por sua vez, reage ao preconceito percebido, a partir de suas crenças e história de vida”, comenta Paula Teixeira Fernandes, psicóloga do Departamento de Psicologia da Assistência à Saúde de Pacientes com Epilepsia (ASPE) e autora da pesquisa. “A percepção do estigma é o reflexo da existência do estigma na sociedade”, conclui.
Apesar de afetar uma parcela considerável da população mundial, 1% a 2% das pessoas (só no Brasil existem mais de 3 milhões de casos), e de ser tão antiga quanto a própria humanidade, a epilepsia é até hoje associada a possessões demoníacas e problemas espirituais. Por conta disso, a pessoa com epilepsia ainda enfrenta dificuldades sociais como arranjar um emprego, formar uma família e se inserir na sociedade. Ela é considerada diferente e se sente diferente. “O que a gente fez foi avaliar como isso acontece na população brasileira. Nós desenvolvemos esse instrumento para fazer o levantamento epidemiológico da percepção do estigma na comunidade”, explica a pesquisadora.
Para fazer esse levantamento foi preciso antes criar um instrumento: a escala de estigma na epilepsia, que avalia as dificuldades enfrentadas pelos epiléticos no dia a dia, a qualidade das informações e os tipos de preconceito existentes. As perguntas são respondidas tanto pelos pacientes quanto pela comunidade em geral. As respostas são avaliadas em uma escala de quatro componentes – não, um pouco, bastante, muitíssimo. Depois, por meio de uma fórmula estatística, essas respostas são transformadas em um escore geral, utilizado para avaliar a percepção do estigma.
Em Campinas, o levantamento analisou 1850 casos e concluiu que o estigma varia de acordo com o sexo (nas mulheres a percepção do estigma foi maior), com a orientação religiosa (os espíritas são os que encaram melhor a epilepsia) e com a escolaridade (quanto menos a instrução, maior a percepção do estigma). A psicóloga acrescenta que “quanto maior a percepção de estigma, menor a qualidade de vida”.
Por essa pesquisa, Paula ganhou o prêmio Young Investigator Award da Liga Internacional contra a Epilepsia durante o Congresso Mundial de Epilepsia, realizado no final de agosto, em Paris. O prêmio é dado a pesquisadores com menos de 35 anos de idade que realizaram estudos relevantes sobre o tema. Entre 1400 trabalhos apresentados do mundo todo, apenas 31 foram selecionados e 4 deles eram do Brasil.
“O grande mérito desse instrumento é ele ser o primeiro. Até então não existia em nenhuma língua uma escala voltada para quantificar a percepção de estigma na epilepsia. Esse instrumento é uma referência para instrumentos complementares”, comenta Li Li Min, professor do Departamento de Neurologia da Unicamp e orientador da pesquisa. Segundo ele, a escala, como qualquer instrumento de avaliação, tem suas limitações. “Ela serve como uma referência, mas precisa ser complementada”.
Verba para a saúde Os paises que conduzem projetos demonstrativos e mostram resultados estão automaticamente credenciados para solicitar uma verba de U$50 milhões que o Banco Mundial destina à saúde mental. O projeto brasileiro para a Campanha Global “Epilepsia fora das sombras” está previsto para ser concluído no primeiro semestre de 2006.
“O nosso projeto vai ter uma grande utilidade, porque ele tem resultados”, expõe Li Min, que é também presidente ASPE. “Com essa verba, temos a idéia de criar centros estratégicos, um em cada região do Brasil, para atender os pacientes que não se adaptam aos medicamentos. Pelos nossos cálculos, conseguiremos equipar esses centros de referência local com aparelhos adequados e com capacitação de funcionários”.
A idéia, de acordo com o médico, é utilizar as informações levantadas para formular um modelo de atendimento na rede básica aos pacientes de epilepsia no Brasil, adequado à situação da saúde no país. “Tendo em vista que 70% a 80% dos casos são controlados com uma medicação de baixo custo existente na rede básica, o que temos que fazer é pegar o profissional da rede básica e orienta-lo sobre o tratamento com esse medicamento. Os 20% que não se adaptam ao remédio serão encaminhados aos centros de referência”, completa Li Min.