Está em trâmite no Ministério da Saúde a portaria que institui a estratégia de atenção à epilepsia a ser implantada em todo o território nacional. O documento, embora não seja uma lei (é apenas uma norma administrativa), é considerado uma conquista pelas organizações que trabalham no país para diminuir o preconceito e melhorar a qualidade de vida das pessoas com o problema. Pela primeira vez, a epilepsia, considerada a condição neurológica grave mais comum do mundo, começa a receber do governo brasileiro a atenção necessária para o desenvolvimento de um plano de redução dos encargos econômicos, físicos e psicossociais que ela acarreta.
Essa atenção surge da mobilização global que, liderada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), o International Bureau of Epilepsy e a International League Against Epilepsy, criou em 1997 a Campanha Global “Epilepsia fora das Sombras”. Em 2002, o Brasil passou a fazer parte desse grupo e desde então desenvolve um projeto demonstrativo, a fim de apontar soluções simplificadas para contornar os problemas econômicos, sociais e culturais provocados pela falta de informação a respeito da epilepsia.
O texto da portaria, que deve ser oficializado até o próximo mês, delibera ações que vão desde a articulação entre o Ministério, as Secretarias de Estado e as Secretarias Municipais de Saúde, as instituições acadêmicas e as organizações da sociedade civil de todo o país para o desenvolvimento de ações e cuidados qualificados, até a instituição do Dia Nacional da Epilepsia, a ser celebrado todo nove de setembro. “Conseguimos, enfim, sensibilizar o governo para os problemas da epilepsia, demonstrando que eles podem ser contornados com ações simples”, aponta o neurologista Li Li Min, coordenador do Projeto Demonstrativo Brasileiro da Campanha Global Epilepsia Fora das Sombras.
O projeto brasileiro, que teve início em 2002, foi concluído em abril e apresentado no IV Workshop da Campanha Global, nos dias 4 e 5 de maio, na Unicamp, em Campinas. Uma das principais estratégias estudadas foi a possibilidade de concentrar o atendimento aos pacientes nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), uma vez que mais de 70% dos casos de epilepsia são tratáveis com medidas simples. Li Min conta que essa proposta é uma alternativa de baratear o atendimento da maioria que se adapta bem aos medicamentos e não necessita de acompanhamento mais específico. Os casos mais graves, que representam 20% a 30% do total, seriam encaminhados para os centros de referência, onde receberiam um atendimento mais especializado. “Desenvolvemos um modelo de atendimento básico, articulado com o sistema de saúde existente, propondo ações estratégicas centradas nos profissionais de saúde e na comunidade”, comenta o médico.
Nessa análise, os pesquisadores constataram que os casos de maior sucesso no atendimento das UBS foram os que não tiveram troca do corpo clínico durante os anos estudados, havendo uma relação mais próxima entre médico e paciente. “A mudança constante de pessoal nas Unidades pode atrapalhar a continuidade do projeto”, diz Li Min. Depende também da localização das UBS, da situação sócio-econômica dos moradores atendidos pela unidade, de como os pacientes se adaptam e aceitam essas unidades.
Em Barão Geraldo, um distrito da cidade de Campinas, por exemplo, o modelo não funcionou. Começaram atendendo 122 pacientes e, no final dos quatro anos, não havia mais nenhum. As justificativas são diversas: os espaço era improvisado, não era ainda uma sede própria e apropriada, a equipe não teve fôlego de continuar os treinamentos e, também, tem a proximidade com o Hospital das Clínicas da Unicamp, que é um centro de referência.
O Projeto Brasileiro também estudou modelos de cursos capacitação para médicos, enfermeiros e outros profissionais da saúde que atuam nas Unidades. Além disso, houve um projeto voltado para a formação de redes sociais para divulgação adequada da epilepsia para líderes comunitários aplicarem em suas comunidades, chamado “Projeto 1.000 líderes”. O projeto foi aplicado em Campinas e cidades da região entre novembro e março e os resultados dessa disseminação serão avaliados em agosto.
“O que estamos tentando nesses quatro anos é a construção de um Programa Nacional de Epilepsia, que considere-a um problema de saúde pública. Demonstramos que pelo nosso modelo as pessoas com epilepsia têm uma melhora geral na qualidade de vida, desde a redução das crises até a reintrodução social. Essas estratégias podem ser aplicadas em todo o país. Os elementos chave estão aí e só precisam ser adaptados de acordo com os centros médicos locais.”, aponta Li Min.
Os objetivos da campanha global vão no sentido de melhorar a aceitabilidade da epilepsia entre as pessoas, melhorar o tratamento, os serviços e, em especial, a prevenção da epilepsia no mundo inteiro – hoje, a malária e a cisticercose, parasitoses cujas prevenções se dão por medidas simples de saneamento básico ou vacinação, são os principais causadores.
“A grande dificuldade é conseguir fundos monetários para os projetos porque muitas organizações não consideram a epilepsia prioridade. A maior parte das verbas vêm da OMS”, argumentou o neurologista britânico Ley Sander, durante o IV Workshop. Sander é membro do comitê da Campanha Global e segundo ele, os números da epilepsia no mundo apontam para uma concepção diametralmente oposta da que possuem essas organizações.
Atualmente, de acordo com a OMS, 50 mil pessoas no mundo convivem com a epilepsia ativa. Dessas, 42.500 vivem em países em desenvolvimento. A cada ano, surgem 2.500 novos casos e pelo menos 250 mil pessoas terão uma crise ao menos uma vez na vida. A grande maioria dessas pessoas, algo em torno dos 80%, não recebem o tratamento adequado ou nem são tratadas, o que aumenta a mortalidade.
Outra dificuldade que o médico apresentou é o preconceito. Embora seja a condição neurológica grave mais comum existente, a epilepsia é secularmente cercada por mitos que estigmatizam os pacientes. A falta de informações adequadas contribui para perpetuar esse rótulo perverso e, de acordo com Sander, a ignorância sobre a epilepsia não é um privilégio dos países pobres. Na Inglaterra, por exemplo, um país cuja taxa de desemprego gira em torno dos 11%, a porcentagem entre as pessoas com epilepsia é cinco vezes maior: 56% estão desempregadas. “Essas pessoas têm muito por que lutar, pois quando se trata de epilepsia, o mundo inteiro é ainda um país em desenvolvimento”.