A discussão sobre a legalização ou descriminação do aborto volta ao centro das atenções com as mensagens deixadas por Bento XVI em sua visita ao Brasil. A complexidade do tema envolve a difícil definição de quando começa a vida e a partir de quando ela deve ser protegida. Para o governo, que não descarta a possibilidade de realizar um plebiscito sobre a legalização do aborto, o debate deve ser conduzido sob o ponto de vista que envolve questões de saúde pública. De fato, a legalização do aborto evitaria as costumeiras seqüelas, como hemorragias, perda do útero ou até mesmo a morte, de mulheres que buscam caminhos clandestinos. Por outro lado, a Igreja teme uma banalização do sexo entre a juventude.
Antes mesmo de pisar em solo brasileiro, o papa deu declarações aos jornalistas sobre a posição da Igreja acerca de uma lei no México, recentemente aprovada, que legaliza o aborto na Cidade do México até a 12° semana de gestação. Para o representante máximo dos católicos, a posição mexicana pode “contaminar” outros países da América Latina. A Igreja apóia a excomunhão dos parlamentares católicos que votaram a favor dessa lei, conforme está previsto no Código do Direito Canônico da Igreja Católica.
As discussões não envolvem apenas a fé religiosa, passam também pelo campo da política, ética e biologia, portanto envolvendo território e cultura. Cientistas, Organizações Não-Governamentais e a Igreja, têm sido os principais agentes que disputam lugar na promoção de políticas públicas que legalizem ou proíbam o aborto. No Brasil, fala-se em descriminação, pois conforme previsto no Código Penal, a prática do aborto ou sua promoção, podem acarretar de um a quatro anos de prisão. Apenas em duas situações o aborto deixa de ser crime: de estupro e de risco à vida da mãe. A proposta de um Anteprojeto de Lei, que está tramitando no Congresso Nacional, alterando o Código Penal, inclui também uma terceira possibilidade, quando há constatação anomalias fetais.
Para o professor de bioética da Universidade de São Paulo, Dalton Luiz de Paula Ramos, Bento XVI “está radicalmente certo quando afirma que o aborto é um crime hediondo”. Ramos não acredita que os problemas sociais em função de uma gravidez inesperada, ou fruto de uma violência, se solucionariam com a descriminação do aborto. “É um problema que diz respeito a cada um de nós. Tem uma dimensão moral da responsabilidade em relação à saúde. Cada um tem a responsabilidade moral pela própria saúde e pela saúde do outro”, defende. Para os contrários à legalização do aborto essa é uma solução destrutiva, simplista e com consequências físicas e psicológicas para as mulheres imprevisíveis.
Já a ONG feminista de caráter ecumênico, Católicas pelo Direito de Decidir, o aborto deveria ser encarado como uma questão de saúde pública e não de religião. “Lutamos pela legalização do aborto, pois sua criminalização aumenta o número de internação e de mortes de mulheres”, diz Yury Puello Orozco, doutora em Ciências da Religião e integrante da Coordenação de Católicas pelo Direito de Decidir. Os dados do Ministério da Saúde indicam que, por ano, no Brasil, são realizados 1 milhão de abortos. Nesse quadro, cerca de 250 mil mulheres são internadas anualmente no Sistema Único de Saúde (SUS) por complicações de aborto, sendo essa a quarta principal causa de morte materna no país.
O estudo Panorama do Aborto Legal no Brasil, elaborado pela OnG, apresenta resultados de duas pesquisas sobre os serviços de aborto legal no Brasil. Coordenado pela pesquisadora em ciências da religião, Rosângela Aparecida Talib, o estudo traça um panorama da precária situação médico-hospitalar nas macro-regiões do Brasil, no que concerne ao aborto, e sugere caminhos para melhorar o cenário.
A principal constatação do estudo é que metade dos brasileiros (48%) desconhece as situações em que o aborto pode ser feito legalmente. De acordo com o documento, a questão mais urgente é priorizar investimentos na implantação de serviços nas capitais, nas cinco unidades da federação que, segundo os dados da pesquisa, não dispõem de nenhuma unidade ou ainda não prestaram atendimento: Roraima, Amapá e Tocantins (Região Norte); Piauí (Região Nordeste) e Mato Grosso Sul (Região Centro-Oeste). Já nos estados do Rio de Janeiro e Mato Grosso do Sul a pesquisa sugere que esse “acompanhamento especial seja oferecido aos profissionais atuantes nos serviços de saúde de dois estados, onde a ofensiva conservadora da Igreja tem interferido na implantação de serviços, no cumprimento das normas do Ministério, na assistência à anticoncepção e, até, no cumprimento de alvarás judiciais”.
A postura da Igreja, na visão da OnG, aprofunda ainda mais a distância da sociedade com o catolicismo. “A Igreja ainda não encontrou respostas para questões modernas e encara com uma dose de intolerância certos aspectos morais da vida social”, analisa Orozco. A legalização do aborto envolve discussões sobre a soberania feminina, ou seja, o direito que a mulher de decidir sobre seu corpo e a garantia dos direitos das mulheres. O movimento de mulheres defende que o aborto deve ser uma decisão da mulher até a 12ª semana de gestação e que o atendimento na rede de saúde seja regulamentado. “Assim, será possível garantir o direito básico que as mulheres têm de serem atendidas com dignidade nas redes de saúde (pública e privada), tendo acesso, inclusive, ao planejamento familiar”, conclui a pesquisadora.
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