O vento que passa pelas folhas da árvore e o foguete que o vizinho estoura quando seu time faz gol; o vulto que se entrevê no quarto escuro e o passarinho no céu ensolarado… Somos capazes de detectar sensações com diversas ordens de magnitude. Este fato é tão integrado no nosso dia-a-dia que poucas pessoas o questionam. A verdade é que se trata de um dos grandes mistérios da psicofísica, que perdura há mais de 100 anos. Finalmente, através de um modelo computacional, os físicos Osame Kinouchi e Mauro Copelli acreditam ter desvendado a charada.
A amplitude de sensibilidade é intrigante porque cada neurônio – células que recebem e transmitem estímulos sensoriais – só é sensível a uma faixa muito estreita de variação em intensidade. Por isso a psicofísica, disciplina que estuda como um organismo usa seus sistemas sensoriais para detectar eventos em seu meio, busca compreender essa amplitude, ou intervalo dinâmico. De acordo com Kinouchi, do campus de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), e Copelli, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a resposta está na interação entre os neurônios e não em sua capacidade individual. Os resultados de sua pesquisa foram publicados este mês na revista científica Nature Physics (vol.2, pp. 348-352).
A pesquisa feita pela dupla de físicos é completamente teórica e se apoiou em simulações feitas em um computador de uso pessoal. O uso de modelos matemáticos para explicar fenômenos biológicos costuma ser visto com desconfiança por quem não é da área, mas são ferramentas que permitem o estudo de assuntos extremamente complexos, como o clima, organismos vivos, fenômenos populacionais ou mesmo a mente humana. Kinouchi e Copelli fizeram uma representação teórica de uma rede de elementos excitáveis, que corresponderiam aos neurônios. A simulação envolve o conhecimento sobre a relação entre os elementos, por exemplo, quando um deles é estimulado, quantos outros recebem a informação? Várias opções foram então investigadas pela simulação em computador, até ser identificada aquela que apresenta resultados semelhantes ao que se observa na realidade.
Ponto crítico
O segredo parece ser que uma rede de neurônios tem que operar próxima a uma transição de fase, ou criticalidade. Isso quer dizer, no caso dos neurônios, que uma célula estimulada deve transmitir a informação a por volta de uma outra célula. Às vezes menos, às vezes mais, mas em média não deve fugir muito dessa unidade. Um sistema chamado subcrítico tem uma razão entre atividade futura e prévia menor do que um. Ou seja, a atividade no tempo inicial é maior do que num momento futuro. Esses casos apresentariam pouca sensibilidade a estímulos fracos. Por outro lado, um sistema supercrítico causaria a saturação dos neurônios, que não seriam capazes de diferenciar as sensações fracas das fortes. O sistema no ponto de criticalidade permite que estímulos de intensidades muito diversas sejam registrados.
A ligação elétrica entre as células do sistema nervoso depende de uma substância chamada conexina. Um grupo de pesquisadores norte-americanos pesquisou a sensibilidade visual de ratos com deficiência na produção de conexina-36. Os resultados, publicados em 2002, mostram que a conexina é essencial para a visão de mamíferos. O efeito detectado nesses experimentos é coerente com o modelo de Kinouchi e Copelli. Para que ele seja validado, será necessário esperar resultados de mais pesquisa sobre o papel da comunicação elétrica entre neurônios nos sentidos de animais.
O princípio elucidado pelos físicos brasileiros pode ser usado para desenvolver sensores artificiais baratos com ampla sensibilidade. Embora estejam trabalhando em patentear essa aplicação, os autores ressaltam que não é a inovação que os motiva. Ao contrário, o que eles procuram é “entender melhor um problema básico da relação mente-cérebro, o modo de funcionamento de sistemas sensoriais biológicos e a possível função de sinapses elétricas no cérebro”.
Compreender como funciona o sistema sensorial tem grande importância, como ressalta o comentário sobre o artigo de Kinouchi e Copelli publicado na própria Nature Physics. Afinal, a sobrevivência de qualquer animal depende, em grande parte, da sua capacidade de ver, ouvir, tocar, sentir cheiros e gostos.