Quais os acontecimentos e desdobramentos, ou as diferenças e semelhanças das ditaduras militares do cone sul da América Latina? Essa foi uma das questões presentes no 3º Congresso Latino-Americano de Ciência Política, Democracia e Desigualdades, promovido pela Associação Latino-Americana de Ciência Política (ALACIP), no início do mês. Os debates ressaltaram a importância do estudo sistemático dos documentos da ditadura militar.
A cientista política Maria Celina D’Araújo, do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas, destaca que há dois tipos de memória do período da ditadura: a dos militares e a da esquerda (dos torturados), que devem ser analisadas em contra e sobreposições. “Esse estudo, além de construir um registro histórico mais transparente, que não permita o esquecimento dos episódios dessa época, pode auxiliar na percepção brasileira sobre cidadania”, argumenta D’Araújo.
Documentos da ditadura militar
Durante a ditadura brasileira, haviam congresso e partidos, o que promovia uma institucionalidade do governo militar. Segundo a cientista política, apesar de não ser comum em regimes repressores, os documentos produzidos na época foram guardados porque além dos militares acreditarem em seus projetos políticos, havia uma consciência história.
Embora parte dos documentos tenha sido destruída e ainda existam arquivos fechados com o carimbo “secreto”, o Brasil é o país que mais possui fontes e realiza pesquisas sobre a ditadura militar, comenta a pesquisadora do CPDOC.
Em termos acadêmicos, no entanto, o estudo da ditadura militar enfrentou um impasse logo após o seu término. “Se por um lado, a academia ferida, após prisões e exílios, não queria se dedicar ao estudo de um assunto pouco nobre – explica D’Araújo – por outro, tudo era secreto e inacessível”. Apesar das restrições confidenciais, os arquivos do Departamento de Ordem e Política Social (Dops) começaram a ser abertos a partir de meados dos anos 1980.
De acordo com a cientista política, hoje as principais fontes de documentação são os arquivos, produzidos sob parâmetros burocráticos, do Supremo Tribunal Militar (dos quais a Unicamp possui cópia) e do Arquivo Nacional, que disponibliza os documentos do Serviço Nacional de Informação (SNI), do Conselho de Segurança Nacional (CSN) e da Comissão Geral de Investigações (CGI), os quais se encontravam em poder da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) até o final de 2005.
Por outro lado, D’Araújo explica que, apesar da quantidade de documentação, a pesquisa é dificultada pela desorganização do material. Nessa direção, a pesquisadora do CPDOC chama a atenção para a importância da organização e análise dessas fontes para nossa memória histórica e compreensão dos nossos atuais movimentos políticos. “São questões a recuperar, cada uma em seu contexto”, completa.
Regimes autoritários do cone sul da América Latina
Enquanto no Brasil, os militares falaram, foram entrevistados e biografados, no Chile ou na Argentina nenhum militar falou sobre o período militar e as fontes são poucas, conforme registra a historiadora Silvia Dutrénit Bielous, do Instituto José María Luis Mora, no México.
Bielous explica que no Chile e Argentina a escala de mortos e desaparecidos foi maior, o que pode explicar que a luta pelos direitos humanos, nesses países, é mais forte. Para D’Araújo, o Brasil não possui um movimento de direitos humanos que mobilize a sociedade. Além disso, nesses países há uma preocupação em julgar os militares pela violência e repressão durante seus regimes autoritários. “No Brasil, a transição se deu em forma de acordo – comenta a cientista política – o que gera impunidade para os militares. Nenhum militar irá para o banco dos réus, porque faltam recursos legais para punir. O que vai contra aos direitos humanos”.
Para César Tcach, cientista político da Universidad Nacional de Córdoba, além do número expressivamente superior (10-30 mil entre 1976 e 1983) de desaparecidos políticos na Argentina, outro ponto que diferencia sua ditadura da brasileira foi o seu término: por colapso, no contexto da guerra com a Inglaterra pela posse das ilhas Malvinas. Já no Chile, o plebiscito de 1989 iniciou o fim da sua ditadura, que foi efetivado em 1990 com a saída de Pinochet.
Os pesquisadores ainda identificaram que tanto na Argentina, quanto no Chile, toda cadeia militar era responsável pela violência e repressão aplicada no país. Diferente do Brasil, onde a repressão era institucional, mas era operacionalizada a partir de uma elite de ações. “A ditadura foi, efetivamente, do exército, cujos braços eram as polícias civil e militar”, afirma D’Araújo.