Lendas antigas sempre falam de estranhas criaturas que habitam o fundo dos lagos ao redor do mundo. E foi justamente em uma lagoa brasileira que uma dessas criaturas foi encontrada. Longe de ser um dos lendários monstros, o Magnetoglobus multicellularis é apenas uma bactéria, mas está desafiando uma equipe de cientistas que há 25 anos tenta compreender esse ser bastante peculiar que é diferente de todos os outros microorganismos conhecidos até então. A bactéria habita as águas salgadas da lagoa do Araruama, no Rio de Janeiro, e foi encontrada por uma equipe de pesquisadores brasileiros em 1982, mas só agora pode ser melhor compreendida.
O Magnetoglobus multicellularis (literalmente, “bola magnética multicelular”) é uma criatura tão intrigante que o artigo que o descreve foi capa da edição de junho da revista International Journal of Systematic and Evolutionary Microbiology, publicado pela Sociedade de Microbiologia Geral do Reino Unido. “O organismo parece desafiar. Ele não se ’encaixava’ em nenhuma forma de classificação e foi preciso muito trabalho na microscopia eletrônica, no estudo comportamental, no estudo de propriedades magnéticas para melhor compreendê-lo”, conta Henrique Lins de Barros, físico do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) e um dos autores do artigo sobre a bactéria.
O organismo é tão diferente das outras bactérias que foi classificado como uma nova espécie. “Tudo mostra que ele é uma espécie nova no filo das Proteobacteria”, afirma Barros. Porém, para que seja oficializado como uma nova espécie, é preciso que as bactérias sejam cultivadas em uma cultura pura – o que ainda não foi alcançado pela equipe de pesquisadores. “Para ir adiante, é preciso conseguir amostras mais ricas: conseguir um meio de enriquecimento ou, idealmente, um meio de cultura. Aí estaremos entendendo o metabolismo e poderemos estudar detalhes que com as atuais amostras não é possível”, explica o físico. Deste modo, a nomenclatura atual do microorganismo recebe a indicação Candidatus na frente, para apontar que seu nome ainda não é definitivo.
O trabalho está sendo tão complexo que exige a participação de pesquisadores de diversas áreas. Além de Barros, a equipe é composta por Fernanda Abreu, Juliana Lopes, Carolina Keim e Ulysses Lins, do Instituto de Microbiologia Paulo de Góes, da UFRJ, e Frederico Gueiros Filho, do Departamento de Bioquímica da USP, que se uniram para a difícil tarefa de descrever e compreender este intrigante organismo. “Sem este grupo de pesquisadores de alto nível, seria simplesmente impossível trabalhar com as amostras que temos”, declara Barros.
Particularidades
A lista de excentricidades da nova criatura é bem comprida. O primeiro fato que chamou a atenção dos cientistas é que ele é formado por um aglomerado de cerca de 20 células procariontes (sem membrana nuclear) – até então todos os organismo procariontes conhecidos são unicelulares. A questão gerou dúvidas se o organismo não seria uma colônia de bactérias interdependentes, mas as análises mostraram que não. “Juntar física com biologia foi um passo importante”, diz Barros. “A física mostrava que o comportamento observado só poderia ser explicado se houvesse um altíssimo grau de organização, o que nos levava a supor que estávamos diante de um organismo que só seria viável enquanto indivíduo. A biologia, em particular a microbiologia, mostrava que as células estavam juntas, compactas, e que não podiam existir isoladas”, completa.
Outra peculiaridade é o fato da bactéria crescer, aumentando seu número de células para 40, e logo depois se dividir em dois novos organismos. “Estes organismos são esféricos. Cada uma das células cresce (todas ao mesmo tempo) e se dividem (todas ao mesmo tempo). E aí ele se deforma e dá origem a dois novos organismos esféricos. É um processo raro de reprodução”, explica Barros.
Um dos aspectos mais interessantes é a capacidade da bactéria interagir com seu campo magnético. As bactérias magnéticas são comuns: elas possuem minúsculos cristais de magnetita no interior de seus corpos e utilizam seu magnetismo para navegar nos sedimentos e na água, como se fossem bússolas microscópicas.
Porém, o Magnetoglobus multicellularis tem um comportamento muito mais complexo. Diferente das outras bactérias magnéticas, ele não é dominado pelo campo magnético, podendo até mesmo nadar contra ele. Além disso, o organismo produz ao mesmo tempo dois tipos de cristais com ferro, a magnetita e a greigita – a produção de ambos os cristais por um único organismo ainda não foi descrita. E mais: a bactéria é capaz de controlar o tamanho, a forma e a composição química do cristal, transformando o ferro do ambiente nesses cristais em um processo de biomineralização. “Tem muito mais coisa nesta área e ainda estamos bem distantes de entender”, afirma o pesquisador.
Novos horizontes
A descoberta dessa interessante criatura não é apenas intrigante, mas também pode apontar novos horizontes para diversas áreas da ciência. Seus estudos podem ajudar a compreender a evolução da vida na terra, podendo até mesmo, em uma visão otimista, preencher uma lacuna evolutiva. “O Magnetoglobus multicellularis representa uma forma de organização de bactérias que até então não tinha sido vista, dando origem a um indivíduo multicelular. É interessante pensar como isto ocorreu e o que levou a que isso ocorresse”, declara Barros. Mas adverte: “Afirmar que o organismo é um hiato evolutivo é prematuro, ainda existem muitas perguntas a serem respondidas”.
Outra nova porta que poderia ser aberta com a pesquisa desta bactéria diz respeito a seu magnetismo. A compreensão do processo com que transforma o ferro do ambiente em cristais de magnetita e greigita pode possibilitar o desenvolvimento de um método para produzir cristais magnéticos muito puros e de excelente qualidade. Em outras palavras, o Magnetoglobus multicellularis pode ensinar físicos e tecnólogos como produzir nanocristais magnéticos que poderão ser empregados nas futuras gerações de computadores. Isso é o que pode ser vislumbrado com o que já se sabe sobre essa criatura hoje. Mas ainda há muito mais a se descobrir a respeito desse organismo misterioso, o que pode significar novos horizontes para a ciência.