“Eu sou eu; quem é você?”, disse uma. “Eu não faria o meu clone! Eu sou exclusiva!”, gritou outra. Foi assim, divertindo-se e repetindo este diálogo maluco, que estudantes da rede municipal de Campinas saíram do Museu da Imagem e do Som (MIS) no dia 5 deste mês, após a encenação da peça “Num dado momento – biotecnologias e culturas em jogo”. A diversão e o papo não escondem, e nem tampouco a peça, uma discussão bastante séria e bem concreta na vida de todos nós: como as biotecnologias afetam o futuro da humanidade? De forma previsível, dada, ou incerta?

Muitas vezes os avanços da ciência nos passam a sensação de que um dia os homens terão pleno controle sobre a vida na Terra. Não só devido a resultados extraordinários, mas pela própria forma como a mídia os divulga. As biotecnologias constituem um campo da ciência onde “brincar de Deus” parece mais próximo da realidade: os deuses seriam cientistas que criariam, como que num passe de mágica, ou com um sopro divino – como na peça -, o seu outro “eu”, o seu clone, além de muitas outras coisas inacreditáveis.
O comentário da aluna, que expressou não querer um clone, remete aos conflitos de identidade que emergem da interação entre progressos biológicos e tecnológicos, como aqueles vislumbrados no filme Inteligência Artificial, em que um menino-robô tem múltiplas cópias; não é “exclusivo”, como desejam o personagem e a garota entrevistada. O tema é quente e está na ordem do dia. Mas diferente do filme, que parte de um dado pressuposto e prevê um futuro determinado, a peça joga justamente com o acaso para construir um futuro múltiplo e imprevisível. A peça não tem um final e os seus diversos fins variam infinitamente, de acordo com a participação dos expectadores. Assim se escreve o futuro da humanidade: num poema esquizofrênico quilométrico, resultante de cada encenação e formado pela combinação de palavras dadas e inimagináveis, em que cada um dá a sua contribuição.

O grupo que concebeu a peça, o Parada de Rua, faz parte do projeto Biotecnologias de Rua, financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e desenvolvido por pesquisadores e artistas vinculados ao Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) e a Faculdade de Educação (FE), ambos da Unicamp.
Tão perto e tão distante
Elas estão por toda parte. “As biotecnologias circulam no cinema, nas novelas, no jornal, na publicidade, nos desenhos animados, na literatura, nos movimentos sociais, na medicina, nos supermercados, enfim, no cotidiano de cada um e de todos”, explicita Carolina Rodrigues, integrante do grupo que produziu a peça. Mesmo assim, não é com familiaridade e intimidade que as pessoas costumam tratar do tema.

Para a aluna Caroline Freitas, da oitava série da Escola Municipal de Ensino Fundamental “Sílvia Simões Magro”, o assunto “é algo que a gente nunca vê, que apareça toda hora na TV”, e por isso gostou da peça. Já uma outra estudante expressou mais do que desconhecimento sobre o tema: uma imagem mistificada das biotecnologias. “Achei que iam dar uma explicação sobre a revolução, sobre esta coisa do feto, das biotecnologias… Mas no fim teve uma coisa da revolução, quando a mulher pediu a pizza. O telefone tocou e ela só passou um número e o cara já deu tudo: o endereço, o celular, os dados completos dela”, comentou Aline Ramos.
Futuro entre o dado e o incerto
A relação que a aluna faz entre biotecnologias e revolução remete à idéia de poder e controle da ciência que circula no imaginário das pessoas, e que os produtores da peça procuram subverter. Segundo Rodrigues, “alguns dos valores que informam as biotecnologias (como os mapeamentos genéticos e os testes de DNA, por exemplo) são a previsibilidade e o controle sobre o passado e o futuro. Propusemos, assim, uma brincadeira com essa idéia de inevitabilidade, determinação, com aquilo que estaria posto e ’dado’ pela ciência”.

Ao longo da peça, que reúne diversas linguagens artísticas – teatro, música, jogo, literatura e poesia -, o público é convidado a contracenar com um cientista-vidente e um dado-humano. “O que você quer levar para o futuro da humanidade?”, perguntam para a platéia. As respostas são variadas: céu, montanha, água, paz, amor, amizade, solidariedade, e incluem aquelas ligadas às pesquisas com biotecnologias, como robôs e espermatozóides. As possibilidades são infinitas. “Então, vamos jogar os dados!”, continua o cientista-vidente, que rola pelo chão três dados gigantes, em cujas faces estão palavras e imagens, com as quais ele interage para construir um fragmento do “futuro da humanidade”. “Vamos ‘poemar’ o futuro! Aonde entra a sua ‘mulher’ aqui?”, pergunta o dado-humano.
“O momento do jogo de dados é um momento fugaz, instável, provisório, marcado pelo acaso, pela intervenção das pessoas que participam na peça, subvertendo, algumas vezes, as regras do jogo, assim como acontece com o movimento das ruas, com a própria vida, com a existência humana”, comenta Rodrigues. E assim, do jogo de dados e da intervenção da platéia, vai sendo tecido o futuro, num grande e infindável poema: “Entre outra inteligência, querer tão outra saúde, uma felicidade, querer tão outra paz, e que natureza um mar, uma mulher tão outra… um gesto quetão, um outro amortão…”. No poema, “as palavras dadas pelas pessoas aparecem como cristas de uma onda, enquanto as palavras dadas pelo jogo parecem desaparecer no mar de repetições”, comenta Susana Dias, que também faz parte do grupo Biotecnologias de Rua, em outra apresentação da peça, na Casa do Lago, Unicamp, para alunos da Especialização oferecida pelo Labjor.
Da divulgação científica à produção de conhecimento
Segundo Rodrigues, a proposta do grupo foi a de realizar um trabalho experimental de divulgação científica, explorando as interfaces entre a arte e a ciência. Mas embora o intuito dos produtores não tenha sido propriamente educativo, este tem sido um de seus efeitos junto ao público. “Nós não abrimos mão do didático, mas pretendemos reformular essa noção. Pensar num pedagógico que passa pela linha do sensível, das sensações. Pensar num conhecimento que se produz nos encontros entre ruas, pessoas, imagens e biotecnologias”, diz Susana Dias. “Queremos provocar o público a refletir e a trocar conosco percepções sobre valores e sentidos que esse tema mobiliza”, completa Carolina Rodrigues. O conhecimento, a partir da peça, seria resultado de um processo de observação, reflexão, interação, sensibilização e interesse/participação. Como destaca uma professora da rede municipal de ensino de Campinas, a peça “é muito legal pela reflexão que propõe para os alunos sobre o que são estas biotecnologias e o choque que existe entre elas e o humano”.
Ficha Técnica Título – Num dado momento: biotecnologias e culturas em jogo Direção e Roteiro – Grupo Parada de Rua: André Malavazzi, Carolina Cantarino, Elenise Andrade, Maria Cristina Bueno, Marcelo Lírio, Susana Dias. Figurino e cenografia – André Malavazzi, Carolina Cantarino, Fernanda Pestana, Gabriela Chiarelli e Susana Dias. Atores – Marcelo Lírio (cientista) e Cristina Bueno (mulher-dado) Produção – Biotecnologias de Rua (Coord. Carlos Vogt) equipe de pesquisadores e artistas do Labjor e FE Unicamp. Número do processo: 553572/2006-7. Edital MCT/CNPq n. 12/2006. Duração – 40 min Contatos – susana@unicamp.br 3521-5193/3521-7165.