A família não morreu, mas já não é mais a mesma. Análise do sociólogo sueco Göran Therborn indica que mulher é elemento-chave para explicar as mudanças ocorridas nos sistemas familiares de todo o mundo, como o enfraquecimento do patriarcado e a queda das taxas de natalidade. Sistemas jurídico e de proteção social precisam adequar-se às mudanças.
A família não morreu. Ter se modificado não significa o seu fim. O enfraquecimento do patriarcado e a queda das taxas de natalidade são as principais modificações comuns ocorridas nos sistemas familiares do mundo contemporâneo. Tais sistemas, no entanto, continuam distintos. Estas conclusões são do sociólogo sueco Göran Therborn, da Universidade de Cambridge, Inglaterra, que esteve em visita ao Brasil no último mês. Therborn é considerado uma das principais autoridades em estudos sobre família atualmente. Sua vinda desencadeou debates sobre o tema, em que a mulher ocupa papel de destaque: ela seria o elemento central nas explicações sobre as mudanças na família ocidental. Estudiosos avaliam que os sistemas jurídico e de proteção social precisam adequar-se às modificações na instituição familiar.

Foto: Carolina Justo
Mudanças na família
Na comparação entre os sistemas mundiais, Therborn concluiu que as mudanças ocorridas ao longo do tempo não foram evolucionárias, seguindo um sentido único, mas desiguais, multidimensionais e multiculturais. “Todos os sistemas familiares são antigos e têm um histórico que está sendo reproduzido; apesar das mudanças, houve pouca ou nenhuma convergência entre eles”, disse. “De uma perspectiva mundial, há uma profunda variação entre situações de casamento quase universal e estrito controle da sexualidade legítima, como na Ásia, e a tendência ocidental de menos casamento e mais sexo”, explica Elisabete Dória Bilac, pesquisadora do Núcleo de Estudos de População (Nepo) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que traduziu para o português o livro de Therborn intitulado Sexo e Poder: a Família no Mundo. Para a pesquisadora, as conclusões de Therborn contrariam prognósticos de “teóricos da modernização”, como Anthony Giddens, que previam o desaparecimento da família e a convergência dos sistemas. A queda das taxas de natalidade e a erosão do patriarcado são dos poucos elementos de mudança comuns entre os sistemas.
Para explicar a configuração dos sistemas familiares e as modificações por que passaram durante o século XX, Therborn conjugou elementos estruturais e cognitivos, explica Bilac. No Ocidente, a mulher ocupa papel de destaque em ambas as explicações. A proletarização da mulher, do ponto de vista de sua necessidade de trabalhar para sustentar a família, e as políticas de planejamento familiar (pelo uso de anticoncepcionais) estão entre os elementos estruturais. Seriam fatores de certa maneira coercitivos responsáveis pela queda das taxas de fecundidade. São, no entanto, insuficientes para dar conta da explicação.

Foto: Felipe Micaroni Lalli
Maria Coleta Albino de Oliveira, pesquisadora do Nepo e professora da Unicamp, faz questão de frisar o aspecto político-cultural. Para ela, as políticas de planejamento familiar não teriam sido bem sucedidas caso não houvesse demanda para a contracepção: uma motivação das pessoas para abandonarem o comportamento reprodutivo tradicional e adotarem novos modos de vida. Esta motivação estaria relacionada ao advento da mulher como sujeito, que teria permitido a ela o controle sobre o próprio destino. A entrada das mulheres no mercado de trabalho, não só por necessidade, mas também por vontade própria, representaria um ganho de poder para elas nas relações de gênero, um dos fatores responsáveis pelo enfraquecimento do patriarcado.
Therborn acrescenta que as mulheres elegem prioridades diferentes hoje: primeiro querem estudar, depois arrumar um emprego bom e estável, comprar uma casa, e só então decidiriam encontrar um parceiro, com quem queiram ter filhos. “E o relógio do tempo vai pressionando as mulheres”, comenta ele sobre a decisão das mulheres de terem menos filhos do que gostariam.
Maria Coleta pondera, no entanto, que o ganho de poder da mulher é relativo. Mulheres de diferentes estratos sociais são vítimas do conflito entre o trabalho produtivo e o trabalho reprodutivo. O mundo do trabalho incorporou a mão de obra feminina mais intensamente, “mas não garantiu às famílias dos trabalhadores alguma autonomia na organização do seu tempo”. “Não é por acaso que as mulheres se adaptaram tão bem aos contratos temporários de trabalho”, explica Coleta. “Precisavam encontrar tempo para as tarefas domésticas”, completa.
O mundo do trabalho continua organizado segundo a perspectiva masculina. E também os sistemas de proteção social. Para Sônia Draibe, pesquisadora do Nepp e professora da Unicamp, “os sistemas de proteção social se erigem sobre uma divisão sexual do trabalho que reflete, na realidade, a estrutura de poder nas famílias”. O acesso aos direitos de cidadania não é o mesmo para homens e mulheres, em decorrência disso.

Foto: Carlina Justo
Conhecer as mudanças na dinâmica de funcionamento das famílias no mundo contemporâneo é essencial para a formulação de políticas públicas. Segundo Lília Montali, também pesquisadora do Nepp, a família passou a ter centralidade nas políticas de assistência social no Brasil. A entrega do benefício do programa Bolsa Família às mulheres, assim como das escrituras de casas populares, por exemplo, é indicativa da decadência do patriarcado. O estudo e as reflexões de Therborn podem auxiliar a tomada de decisão sobre outras ações públicas com foco na família. Suas pesquisas indicam, entretanto, que mudanças na divisão sexual do trabalho, assim como nos sistemas familiares e de modernização, são lentos e culturalmente arraigados, comenta Draibe.
Distintas famílias, no tempo e no espaço
“A família subsiste, em todas as partes do mundo, mas com uma complexidade maior”, afirma Bilac. Mesmo na Europa, depois da revolução sexual e da diluição do padrão de família burguês, morar sozinho é algo raro, muito mais restrito do que se imagina. No entanto, novas formas de família, ou arranjos menos freqüentes, ganharam evidência no final do século passado: casais em que ambos os cônjuges obtêm renda, famílias chefiadas apenas por mulheres, casais sem filhos, idosos morando sozinhos e crianças vivendo a infância como filhos únicos.
Em seu livro, Therborn identifica cinco grandes sistemas familiares no mundo, com base em valores filosófico-religiosos, modelados histórica e geograficamente: 1) o da África (subsaariano), 2) o europeu e americano (ocidental típico), 3) o do leste asiático, 4) o da Ásia do Sul e 5) o da Ásia ocidental e norte da África. Além disso, existiriam dois importantes sistemas intersticiais, surgidos do cruzamento entre alguns destes principais: o do sudeste asiático e o da América crioula. A família brasileira pertence a este último subsistema.
Família brasileira
A família brasileira foi moldada pela intersecção entre as tradições e valores de origem católico-cristã e crioula. A influência crioula estaria na informalidade das relações de gênero e num padrão de sexualidade dominado pelo homem, cujas conseqüências são as altas proporções tanto de filhos nascidos de relações extra-conjugais quanto de famílias monoparentais (chefiadas na sua maioria por mães solteiras). Já a tradição católico-cristã repercutiu, no Brasil, em leis de aborto muito restritivas e em leis de divórcio bastante tardias, explicou Therborn em mesa redonda organizada pelo Nepo e pelo Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (Nepp) da Unicamp.
Ele conta que o estatuto da família latino-americana foi baseado no Código Civil napoleônico, da França de 1.804. Rodrigo da Cunha Pereira, defensor da reformulação do sistema jurídico brasileiro sobre a família, concorda que o estatuto é ultrapassado, pois contempla uma concepção fortemente hierárquica e patriarcal de família. Para ele, o projeto de lei n.º 2.285/07, em trâmite no Congresso Nacional, deve legitimar todas as formas de família conjugais e parentais, com base no vínculo sócio-afetivo. O novo estatuto seria mais adequado, segundo ele, à realidade sócio-econômica e cultural do país. Pereira é professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e presidente do Instituto Brasileiro de Direito da Família (IBDFam).