Uma pesquisa realizada na Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto (FMRP) resultou na produção de uma substância que poderá ser utilizada da mesma forma que é utilizado atualmente o soro antiofídico. Trata-se de um anticorpo monoclonal humano, uma substância produzida por engenharia genética que se liga às proteínas do veneno e, assim, bloqueia suas ações nocivas. Anticorpos monoclonais são proteínas produzidas em laboratório a partir de uma única célula de defesa, sendo, portanto, idênticas em relação às suas propriedades físico-químicas e biológicas.
“Após acidente com o animal peçonhento, os anticorpos administrados ao paciente irão se ligar às proteínas do veneno, impedindo sua ação”, explica José Elpidio Barbosa, professor do departamento de Bioquímica e Imunologia e coordenador do Laboratório de Imunopatologia Molecular da FMRP.
Para a produção do antiveneno, os pesquisadores utilizam uma biblioteca composta por bacteriófagos, desenvolvida pelo Centro de Engenharia de Proteínas da Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Os bacteriófagos são vírus capazes de infectar bactérias e que expressam em sua superfície fragmentos de anticorpos capazes de identificar uma grande diversidade de alvos, inclusive as substâncias tóxicas dos venenos. Pela técnica utilizada, chamada phage display, os bacteriófagos são colocados em contato com veneno de cobra em tubos de ensaio, e aqueles que se ligam ao alvo são escolhidos e utilizados para infectar bactérias. No decorrer do processo, as bactérias recebem a informação genética dos vírus selecionados e passam a produzir anticorpos que evitam as lesões tóxicas causadas pelo veneno.
Anualmente, são notificados mais de 20.000 acidentes com serpentes peçonhentas ao Ministério da Saúde. Segundo dados da Fundação Nacional da Saúde (Funasa), entre 1990 e 1993, cerca de 90,5% dos casos notificados foram atribuídos às serpentes do gênero Bothrops (jararacas), 7,7% ao gênero Crotalus (cascavéis), 1,4% ao gênero Lachesis (surucucus) e 0,4% ao gênero Micrurus (corais verdadeiras).
O tratamento realizado quando uma pessoa é picada por uma serpente peçonhenta é feito com o soro antiofídico, produzido em eqüinos há mais de um século pelo Instituto Butantan, responsável pela produção de mais de 80% do total de soros e vacinas consumidas no Brasil. Por essa técnica, o veneno da serpente – ou de outro animal peçonhento, como escorpião ou aranha – é desidratado e cristalizado para armazenamento.
Para ser utilizado no processo de produção do soro antiofídico, o veneno é diluído e injetado no cavalo, que passa a produzir anticorpos para tentar combatê-lo. Quando o nível de anticorpos desejado é atingido, em média 40 dias depois da injeção do veneno, cerca de quinze litros de sangue do cavalo são recolhidos em três etapas, com um intervalo de 48 horas. O soro é obtido a partir da purificação e concentração do plasma (parte líquida do sangue) e, então, pode ser utilizado em pacientes.
Já a produção de anticorpos humanos pela técnica de phage display não utiliza animais para imunização e praticamente elimina o risco de ocorrerem reações adversas de hipersensibilidade, que são reações indesejáveis à presença da proteína do animal no corpo. Segundo Barbosa, não há necessidade de grandes quantidades de veneno para a produção da substância, o que é uma vantagem quando são utilizados na produção dos anticorpos animais que produzem pouco veneno, mas que podem provocar a morte, como a cobra coral, por exemplo. Além disso, não há necessidade de se manter um serpentário grande. Outra vantagem é que as bactérias produtoras destas moléculas permanecem vivas quando mantidas em congelador a -80ºC e podem ser utilizadas por longos períodos.
Até o momento, a substância foi testada com veneno de jararacussu e de cascavel, mas outros antivenenos estão sendo pesquisados. “Estamos estendendo nossas pesquisas para venenos de abelhas africanizadas, escorpião, aranha armadeira e serpente coral”, diz Barbosa. Segundo o pesquisador, ainda há um longo caminho a ser percorrido, como aperfeiçoar o método de purificação desses fragmentos, numa escala que permita a realização de ensaios mais avançados. “Precisamos conhecer melhor essas moléculas, seqüenciando-as para, se necessário, melhorar ainda mais a capacidade de bloquear os venenos. Mas elas já se mostraram eficientes, tanto em ensaios in vitro como in vivo, em camundongos”, explica. As pesquisas estão sendo financiadas pela Fapesp e pelo CNPq.