Nos anos 80, um trecho da música Comida dos Titãs soou como crítica aos formuladores de políticas públicas no Brasil: “a gente não quer só comida”. Naquela época, o agito e reflexão social promovidos pela redemocratização do país favoreciam a percepção pública do assistencialismo que impregnava muitas ações de combate à pobreza, que costumavam dar comida. Em resposta, nos anos 90 começaram a pulular programas de transferência de renda: Renda Mínima, Bolsa-Escola e, agora, Bolsa Família, que ganhou magnitude no governo Lula.
No novo cenário, outro trecho da mesma música parece continuar válido, atual e crítico: “a gente não quer só dinheiro”. É consensual a idéia de que acabar com a pobreza requer mais do que recursos. Muitas avaliações sobre o Bolsa Família medem seu impacto apenas sobre a renda das famílias pobres. O que escapa a essas avaliações?
Essa é a inquietação de Maria Inês Caetano Ferreira, socióloga, que desenvolve projeto de pós-doutoramento junto ao Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (Nepp) da Unicamp. No dia 17 de setembro, ela apresentou um enfoque inovador para analisar os efeitos de programas como o Bolsa Família.
Na palestra, proferida no auditório do Nepp, Ferreira mostrou sua preocupação em avaliar os efeitos do programa para além da renda. Na pesquisa, circunscrita à capital paulista, mais especificamente ao bairro do Grajaú, ela fará entrevistas qualitativas com os beneficiários do programa. Em seu roteiro, mais do que perguntas sobre a forma como gastam o dinheiro recebido, ela procura saber dos beneficiários o que pensam do programa, se o consideram justo ou não, se sabem como, para que e para quem ele foi criado, e se ele estimula ou não o exercício da cidadania.
Quanto a este último item, seu interesse principal é saber se o programa promove um estreitamento das relações das pessoas de baixa renda com o Estado, facilitando, por exemplo, seu acesso à escola e serviços de saúde, entre outros. Com isso, a pesquisadora procura apreender possíveis efeitos dos programas de transferência de renda sobre outras dimensões da pobreza, como a política, social e cultural.
Cobrar das famílias ou do Estado?
Enquanto a opinião pública cobra o controle mais efetivo sobre o cumprimento pelas famílias beneficiárias das condicionalidades impostas pelo Bolsa Família, Maria Inês se preocupa em averiguar se participar do programa permite às famílias pobres terem acesso a direitos sociais, ainda que “forçadas” pelo programa. As contrapartidas funcionariam, assim, como uma “obrigação positiva”. “No Bolsa Família, as condicionalidades têm como principal objetivo reforçar o acesso aos direitos sociais. O acompanhamento e a punição de quem não obedece a regra é parte obrigatória para que a proposta deixe de ser apenas ‘proposta’ e para que o tal acesso aos direitos se concretize”, explica ela.
Apesar disso, talvez seja mais importante avaliar se o Estado está conseguindo garantir o acesso aos direitos sociais previstos como condicionalidades do Bolsa Família – basicamente saúde e educação para as crianças – do que se as famílias estão fazendo a sua parte. Como pondera a socióloga, “o não cumprimento das condicionalidades pelas famílias pode estar vinculado ao problema de o próprio Estado não oferecer condições para tanto (não oferecer escola e saúde pública, por exemplo)”. Seria justo cobrar das famílias quando é o Estado que deixa de cumprir suas responsabilidades?