O estudo intitulado “Working memory of numerals in chimpanzees“, publicado no começo de dezembro por pesquisadores do Instituto de Pesquisas em Primatas da Universidade de Kyoto, no Japão, – e que teve ampla divulgação pelos meios de comunicação de todo o mundo – foi criticado por alguns pesquisadores. O artigo mostra que chimpanzés jovens apresentaram melhor capacidade de memória numérica que humanos adultos testados seguindo os mesmos procedimentos. Além disso, o desempenho dos chimpanzés jovens foi melhor que o de chimpanzés adultos, no caso, suas próprias mães.
“O artigo é super interessante”, afirma Hércules Menezes, biólogo e docente da Unesp de Rio Claro, “entretanto o grande problema que eu vejo é de amostragem”. O biólogo explica que foram utilizados dados individuais de chimpanzés frente à média obtida de avaliações com humanos. Um outro problema metodológico apontado é que foram utilizados humanos civilizados. “Não sei se o resultado seria o mesmo se fossem utilizados humanos que residem e sobrevivem em uma floresta tropical, como índígenas, por exemplo”, pondera Menezes.
Uma explicação para o melhor desempenho dos chimpanzés jovens em relação aos humanos é que durante a evolução o homem pode ter substituído esse tipo de memória por outras capacidades cognitivas, como a linguagem, enquanto os chimpanzés mantiveram essa forte capacidade de memória visual. “Além da memória, podemos pensar, por exemplo, no caso do olfato. Hoje em dia, numa cidade, não utilizamos o olfato para procurar comida, a linguagem é mais eficiente. Entretanto, faltou mais acuidade metodológica [no estudo]. Primeiramente, um número maior de envolvidos. Segundo, utilizar chimpanzés de ambientes naturais, confrontados com humanos indígenas, bem como chimpanzés aculturados com humanos urbanos”, destaca Menezes.
De acordo com o neurobiólogo e professor da USP, Gilberto Fernando Xavier, que tem experiência em pesquisas na área de aprendizagem, memória e atenção, o artigo está mal feito, cientificamente falando. Segundo ele, os autores não fizeram uma série de controles necessários para chegar às conclusões. “Se fosse um artigo de país de terceiro mundo, não teria sido aceito nessa revista”, acredita. “Os autores baseiam parte das conclusões na velocidade da resposta dos chimpanzés, e as diferenças na velocidade do processamento de informações no sistema visual não são levadas em conta”, diz. Para ele, de acordo com a metodologia utilizada, os autores somente poderiam concluir que o animal é mais rápido, devido à velocidade do seu sistema sensorial, mas não poderiam concluir que a capacidade de memória do animal é melhor que a do humano. Ou seja, pode ser que o baixo desempenho observado em humanos colocados frente a uma rápida velocidade de apresentação dos números não tenha a ver com memória, mas com velocidade de captação da imagem. “Se a pessoa nem viu o estímulo apropriadamente, como pode memorizar a imagem?”, questiona.
Xavier especula que a freqüência crítica de fusão de imagens pode ser diferente no chimpanzé. É possível que a velocidade do sistema visual seja maior no chimpanzé devido à adaptação para a vida nas copas das árvores. “Em outras palavras, se a velocidade do sistema visual não fosse rápida em chimpanzés, esses animais poderiam cair no chão quando saltam de galho em galho. Esse mesmo tipo de pressão seletiva deve ter sido diferente em humanos, cuja adaptação envolveu andar e não saltar em árvores, implicando em diferenças também nos demais sistemas sensoriais. É provável que homens não tenham desenvolvido a capacidade visual e os chimpanzés tenham”, acredita Xavier. “Pode ser uma diferença puramente sensorial e não capacidade de memória. Como não foi feito nenhum teste para verificar se o sistema visual do macaco é mais rápido que o do ser humano, não há parâmetro e essa comparação não faz sentido. [Essa] é uma das principais críticas ao modelo”, afirma.
Outra conclusão obtida no estudo foi que, em geral, o desempenho dos chimpanzés jovens foi melhor que o de adultos. Essa informação, porém, não surpreendeu os pesquisadores. “A tendência é, conforme envelhecemos, irmos perdendo neurônios e conseqüentemente enfraquecendo a memória. Entretanto, existem diferenças individuais. Algumas pessoas perdem mais rapidamente que outras”, afirma Menezes. Animais com infância longa têm mais tempo de convivência com os pais e, com isso, eles adquirem maior quantidade de informação nos estágios iniciais do desenvolvimento. De acordo com Xavier, animais jovens, incluindo-se aí o homem, captam informações ambientais mais rapidamente e respondem mais prontamente aos estímulos. É como se fosse “uma esponja de absorver informação”, compara. “O adulto já criou um arquivo de memórias e faz uso dele para gerar previsões de maior alcance. Já adquiriu informação e faz uso dela”, explica. “O resultado [do estudo] não surpreende e a diferença observada já é conhecida”, diz.
Uma afirmação colocada em xeque nesse estudo é a de que humanos são superiores aos chimpanzés em todas as funções cognitivas. “Certamente um chimpanzé, nascido e criado em uma floresta, será superior (nesta floresta) a um humano urbano, em diversas funções cognitivas. Acho que faltou mais acuidade ao experimento. Entretanto, não acredito e não concordo com estas comparações, elas sempre vêm muito carregadas de antropocentrismo”, diz Menezes. Para Xavier, “é comum que a adaptação a diferentes hábitos de vida leve a capacidades diferentes; mas isto não significa, do ponto de vista biológico, que uma espécie seja melhor do que outra, já que ambas estão adaptadas aos seus respectivos nichos ecológicos”.
Apesar dos problemas apontados, os pesquisadores concordam que esse estudo pode ajudar no entendimento da memória humana. “Qualquer estudo sobre memória acaba contribuindo para o pouco que sabemos sobre memória humana”, afirma Menezes. Já Xavier acredita que “o uso de modelos animais para se entender os mecanismos básicos da memória humana é crucial; com animais é possível fazer determinados experimentos que seriam impossíveis com seres humanos, por razões éticas”, conclui.