O efeito neuroprotetor do lítio

Altas doses de lítio podem ser prejudiciais ao cérebro, mas pesquisas recentes têm mostrado que o uso em baixa concentração cria o efeito contrário de proteção dos neurônios. Um estudo brasileiro e outro norte-americano apontam indícios de que esse efeito pode ser útil em casos clínicos diversos, como na prevenção do Alzheimer em idosos e na ação neurodegenerativa provocada pelo vírus HIV.

A prescrição de lítio para pacientes com transtorno bipolar é comum atualmente. Comum também são os efeitos colaterais, inclusive cognitivos, causados pela ingestão de dosagens elevadas deste metal por períodos prolongados. Entretanto, se altas doses de lítio podem ser prejudiciais ao cérebro, pesquisas recentes têm mostrado que o uso em baixa concentração cria o efeito contrário de proteção dos neurônios. Um estudo brasileiro e outro norte-americano apontam indícios de que esse efeito pode ser útil em casos clínicos diversos, como na prevenção do Alzheimer em idosos e na ação neurodegenerativa provocada pelo vírus HIV.

Em pesquisa publicada no International Review of Psychiatry de fevereiro, pesquisadores da Universidade da Califórnia atestam que a ingestão de lítio em baixa dosagem protege o cérebro de danos cerebrais decorrentes do HIV. Para isso, eles submeteram oito pacientes soropositivos para HIV (que utilizam o coquetel anti-HIV) com problemas de raciocínio ou memória a doses de lítio que variavam entre 0.8 e 1.2 mEq/L (miliequivalente por litro de sangue). Depois de 12 semanas todos apresentaram melhora significativa em testes neuropsicológicos. Seis deles chegaram a níveis considerados normais.

“Avaliamos que esses resultados são fruto da ação inibidora do lítio sobre a enzima glicogênio sintase-quinase 3-b (GSK-3b). Estudos anteriores, inclusive de nossa equipe, mostram que a inibição dessa enzima protege o cérebro contra vários tipos de danos neurológicos”, diz Scott Letendre, autor da pesquisa.

Uma rocha composta por lítio.
Fonte: google.com

No Brasil, a ação do lítio sobre a GSK-3b tem sido estudada na prevenção do Alzheimer, que atinge 5% da população acima de 65 anos. Pesquisadores do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (USP) mostraram que o lítio previne esta doença em idosos com transtorno bipolar.

Tal constatação se deu através de um estudo com 114 pacientes divididos em dois grupos. O primeiro continha 66 idosos com transtorno bipolar que consumiram doses concentradas de sais de lítio por mais de 6 anos. Destes, apenas 5% desenvolveram Alzheimer. Já os 48 restantes foram tratados com outro estabilizador de humor durante 6 meses, no mínimo. Nesse grupo, a incidência de Alzheimer foi de 33%. A pesquisa completa foi publicada no periódico científico British Journal of Psyquiatry (vol. 190 de 2007).

Os resultados com pacientes bipolares levaram a equipe da USP ao estágio atual da pesquisa em que se procura saber se a ingestão de baixa quantidade de sais de lítio previne ou retarda o Alzheimer em idosos saudáveis, mas com alto risco de contraírem a doença. “A enzima GSK-3b inibida pelo lítio se encontra hiperativa em pacientes com risco de Alzheimer. Tal inibição ’protege’ os tecidos cerebrais do acúmulo de beta-amilóide e do colapso do citoesqueleto neuronal, eventos centrais no desenvolvimento da doença”, explica Orestes Forlenza, pesquisador da USP e um dos autores da pesquisa.

Se esses estudos comprovarem que o amplo uso da substância pode evitar, ou ao menos retardar, o aparecimento do Alzheimer, pode haver uma proposta de política pública a esse respeito. Em entrevista concedida ao canal Record News, o coordenador da pesquisa, Wagner Gattaz, comentou que essa política poderia se dar através da inclusão de lítio na água tratada pelos sistemas de abastecimento das cidades. Algo semelhante ao que acontece atualmente com o flúor na prevenção contra cáries dentárias.

Gattaz ressalta, no entanto, que “não dá para pensar em aplicabilidade dessa técnica antes dos próximos cinco ou dez anos. Primeiro, precisamos saber qual é a menor dose eficaz do lítio na prevenção da doença. Somente com uma dose muito baixa poderíamos garantir o uso amplo e seguro da substância, evitando os seus efeitos colaterais”.

Gattaz também ressalta que resultados positivos dessa pesquisa podem diminuir enormemente os gastos atuais com Alzheimer ao redor do mundo. “Sabe-se que, só nos EUA, o Alzheimer leva a um total de gastos, diretos e indiretos, na casa de 100 bilhões de dólares por ano. Qualquer substância que retarde o aparecimento da doença em apenas sete anos levará a uma economia de 10 trilhões de dólares nas próximas quatro décadas”, diz o líder do estudo da USP.

Opiniões

Para Benito Damasceno, coordenador do Departamento de Neurologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a pesquisa sobre a ação do lítio apresenta dados interessantes, mas precisa ser replicada por outros grupos de pesquisa, para comprovar os resultados. Damasceno sugere cautela na ação do lítio, lembrando de casos históricos de substâncias que pareciam eficazes contra o Alzheimer, como a vitamina E, mas que, com o tempo, se mostraram inativas.