Na antropologia, clima e cultura não estão dissociados

As previsões catastróficas que se formaram em torno da chamada crise ambiental utilizam-se de padrões científicos para definir a “verdade” sobre o clima. Para antropóloga Priscila Faulhaber, do Museu Goeldi, tais verdades são baseadas em formas convencionais de ver o meio ambiente e também as mudanças climáticas. Seu estudo privilegia os saberes indígenas, fora da oposição entre clima e cultura.

As previsões catastróficas que se formaram em torno da chamada crise ambiental, utilizam-se de padrões científicos para afirmar que, se o modelo atual de consumo dos recursos naturais não forem modificados, o planeta sofrerá alterações climáticas que prejudicarão as formas de vida existentes na Terra. Porém, há outros enfoques, diferentes desses, que trazem à tona como os saberes tradicionais transmitidos de geração a geração por narrativas orais orientam a relação entre clima e cultura. A pesquisa desenvolvida no Museu Paraense Emílio Goeldi, “Fronteira, identidade e transformações ambientais: análise do ritual de fertilidade Ticuna”, coordenada pela antropóloga Priscila Faulhaber, mostra que é possível pensar numa forma alternativa de relação clima-cultura, fora da oposição entre ciências e culturas.

As alterações climáticas são objeto de estudo da climatologia, um ramo da geografia. Mas também podem ser estudadas pela antropologia, através de um campo de estudo que se chama antropologia do clima, ou seja, a análise da relação entre os fatores climáticos e as culturas humanas. A pesquisa de Faulhaber se propõe a analisar como as alterações climáticas influenciam no comportamento e os rituais religiosos no imaginário e a narrativa dos povos indígenas Ticuna. Segundo explica a antropóloga, “o foco é o ritual de puberdade feminina Ticuna, dentro da antropologia política e simbólica, com base em pesquisa de campo e no exame dos artefatos rituais Ticuna da Coleção Nimuendaju do Museu Goeldi”.

artigo “As estrelas eram terrenas: antropologia do clima, da iconografia e das constelações Ticuna”, foi um dos resultados do projeto com os artefatos Ticuna da coleção Nimuendaju do Museu Goeldi, no qual a pesquisadora realizou pesquisa de campo com os índos Ticuna do Brasil e da Colômbia, em diversas viagens de 1997 a 2002. O inventário dos artefatos rituais foi disponibilizado no CD-Rom “Magüta Arü Inü. Jogo de Memória”, premiado pelo IPHAN em 2003. Atualmente a pesquisadora está cedida ao Museu de Astronomia MCT e vem desenvolvendo estudos no sentido de correlacionar os resultados de sua pesquisa de campo com informações levantadas em arquivos, bibliotecas e centros de ciência no Rio de Janeiro, em uma interface com pesquisas de etnoastronomia, estabelecendo análise de âmbito antropológico, integrando-as em atividades interdisciplinares.

Segundo Faulhaber a racionalidade das operações e métodos científicos que são considerados universais, do ponto de vista de disciplinas específicas, sempre pode ser relativizada. Certas denominações astronômicas convencionadas como universais foram concebidos por povos particulares como fenícios, egípcios, etc. “Julgo que o que se entende como científico diz respeito a concepções específicas de cosmologia, que podem ser comparadas com cosmologias de povos particulares. O próprio Big Bang, normalmente aceito como princípio explicativo de um ‘começo’ para a história do universo, também pode ser entendido como um ‘mito de origem’ e, enquanto tal, comparável com mitos de origem de povos específicos”, explica.

Os relatórios científicos do IPCC, que divulgaram através de documentos científicos “a verdade” sobre os impactos das transformações do clima, são um exemplo. Para Faulhaber, tais verdades são baseadas em formas convencionais de ver o meio ambiente e também as mudanças climáticas. Porém, ela chama a atenção que do ponto de vista antropológico, as convenções podem sempre ser remetidas a princípios estabelecidos com base em consensos, que, “enquanto tais podem ser vistos como arbitrários, uma vez que existe um grande grau de dissenso entre diferentes percepções das chamadas mudanças climáticas globais”, afirma.

Na definição atual de ciência, para que um conhecimento possa ser considerado científico é necessário traçar as operações que possibilitam a verificação de um dado fenômeno, ou seja, determinar claramente o método usado para se chegar a esse conhecimento. A pesquisa de Faulhaber traz à tona uma outra forma de percepção e apresenta outras possibilidades de interpretação sobre o clima. A pesquisadora do Museu Goeldi, analisa a religiosidade climática, ou seja, as manifestações religiosas de determinado povo, relacionadas à percepção de fenômenos climáticos ou ambientais, presente nos rituais dos povos indígenas da tribo Ticuna.

Faulhaber, explica, em seu artigo, que a relação com a natureza e as mudanças ambientais para os Ticuna passa pela interação com as forças e os seres desconhecidos e pela mediação de especialistas nativos, como os xamãs (ou, para os índios brasileiros, pajés), responsáveis pelo controle das técnicas e saberes adquiridos de geração a geração que configuram sistemas de pensamento, visão e reflexão do mundo.