O aborto não é punido no Brasil em duas situações: em caso de risco de vida para a gestante ou de gravidez provocada por estupro. No entanto, enquanto a prática do aborto legal é reduzida, a do aborto ilegal, portanto inseguro, ocorre com uma incidência muito grande. Os números da prática ilegal são inexatos, mas a Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que cerca de 1 milhão de abortos clandestinos acontecem anualmente no Brasil. Segundo a pesquisadora Maria Isabel Baltar da Rocha, do Núcleo de Estudos da População (Nepo), da Unicamp, esse é o perfil da prática do aborto no Brasil. “Essa situação não muda, em parte, porque a legislação também não muda”, diz. “Desde meados do século passado surgem proposições no Congresso Nacional que tentam modificar a lei, mas como o tema gera muita polêmica, os projetos são arquivados ou são rejeitados na votação”, diz. A pesquisadora fez um levantamento sobre as proposições relacionadas ao tema que chegaram ao Congresso desde o fim da década de 1940.
A conseqüência mais imediata dessa situação é o risco à vida ou à saúde das mulheres que praticam o aborto ilegal. De acordo com Baltar da Rocha, existe hoje um projeto de lei, o PL 1135, na Câmara dos Deputados que prevê alterações na legislação, mas não há previsão de data para a votação. O documento incorporou a proposta elaborada por uma comissão tripartite composta por membros do governo, da sociedade civil e do próprio Congresso. O trecho que gera mais controvérsia diz respeito ao direito da interrupção voluntária da gravidez, ou seja, a descriminalização do aborto. “Como estamos em ano eleitoral, os deputados não querem se envolver em votações de temas polêmicos”, afirma Baltar da Rocha.
Para se ter uma idéia, a primeira versão dessa proposição foi enviada ao Congresso em 1991 e, desde então, vem sofrendo modificações e incorporando o conteúdo de outros projetos, sem nunca entrar efetivamente em votação.
Para a pesquisadora, os projetos nunca saem do papel porque as forças que jogam contra e a favor da descriminalização são poderosas. Considerando a legislatura atual (2003 a 2007) e a anterior (1999 a 2003), foram feitas 33 proposições no Congresso relacionadas ao aborto (até abril de 2006). De acordo com Baltar da Rocha, esse é um dos períodos da história do país de maior discussão política sobre o tema.
Ainda de acordo com o levantamento da pesquisadora, os projetos contra a idéia da interrupção da gestação como um direito da mulher foram apresentados, em sua maioria, por setores religiosos liderados pela Igreja Católica. Uma das proposições, por exemplo, garante o direito à vida desde o momento de sua concepção, outra propõe um sistema de assistência à mulher vítima de violência sexual e à criança fruto da gestação resultante do estupro e há, ainda, uma proposta para instituir a data de 25 de março, como dia do nascituro (nove meses antes do Natal).
Já os projetos de lei a favor da descriminalização foram apresentados por grupos liderados ou com o apoio do movimento feminista. Alguns são mais abrangentes como o citado projeto, e outros mais pontuais como a permissão do aborto em caso de anomalia fetal (alguns casos de anencefalia já são autorizados via ordem judicial). Ainda há as proposições que permitem o aborto em casos da gestante ser portadora de HIV e de lesão irreversível ao corpo da mulher.
O resultado desse jogo de forças é que nenhum projeto é aprovado. Até o momento apenas um passou: o que garante o abono no trabalho para faltas que acontecem em decorrência do aborto, mesmo que este seja praticado de forma clandestina.
Democracia
Para Baltar da Rocha, mesmo que não haja previsão para definições no campo legal, há um grande avanço na discussão sobre o tema. “Desde a redemocratização do país, as discussões se ampliam e isso é bom para todos”, diz. Antes disso, a discussão era muito incipiente e quase sempre influenciada por uma visão religiosa que pregava o fim da prática do aborto, inclusive, reitera a pesquisadora, no sentido de impedir os casos já permitidos por lei.
Com a organização do movimento feminista no Brasil, nos anos 1970, a discussão se ampliou. “Mas somente a partir dos anos 1980, no contexto do processo da redemocratização do país, o assunto foi mais à público”, diz a pesquisadora. Desde esse período, cada vez mais proposições são enviadas ao Congresso e novos setores da sociedade entram no debate. Um exemplo disso é a organização Católicas Pelo Direito de Decidir, composta por mulheres que discordam da posição oficial da igreja católica a respeito de questões referentes à sexualidade e à reprodução.
Baltar da Rocha chama a atenção para um outro fato: a reduzida estrutura para atender os casos de aborto legal. Segundo levantamento da referida organização são 37 hospitais, em 21 estados e no Distrito Federal, sendo que o primeiro programa foi implantado no Hospital do Jabaquara, em São Paulo, em 1989. “Atendimentos especializados diminuem o risco de lesão ou morte da mulher, mas ainda são relativamente poucos”, diz a pesquisadora.
De acordo com o documento da Comissão Tripartite, a maioria dos abortos inseguros ocorre com mulheres de baixa renda, sobretudo mulheres negras, e os principais danos à saúde desse tipo de prática são perfuração do útero, hemorragia e infecção. Em 2004, o SUS (Sistema Único de Saúde) atendeu 240 mil casos de mulheres com lesões pós-aborto. “Em muitos países onde houve a descriminalização, a quantidade de abortos foi reduzida”, diz Baltar da Rocha.