A Lei estadual de rotulagem para produtos contendo materiais transgênicos, regulamentada por decreto pelo governador do Paraná Roberto Requião em março, é considerada por alguns apenas uma complementação da lei federal, e para outros, uma medida inconstitucional. As diferentes interpretações da lei ocorrem entre os próprios advogados e expõem o confronto de poder entre os Estados e a União. “A Constituição permite a simultaneidade de Estados e União na legislação sobre um mesmo assunto, mas jamais uma lei estadual pode contrariar uma lei federal”, explica o advogado Celso Luchesi.
O decreto federal 4.680/2003 determina a obrigatoriedade da rotulagem para produtos contendo materiais transgênicos acima de 1%, enquanto a lei paranaense (Lei 14.861/2005) não especifica proporções para a rotulagem desse tipo de produto e por isso está sendo contestada judicialmente. A lei paranaense visa não apenas obrigar a rotulagem dos alimentos geneticamente modificados (OGM) ou que possuam algum ingrediente transgênico na sua composição destinados ao consumo humano ou animal, mas também estabelece o controle e a fiscalização sobre a comercialização de matérias-primas e produtos que contenham OGMs.
“Essas práticas já estavam previstas pela lei federal, mas nunca foram cumpridas”, afirma o advogado do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) Paulo Pacini. Para ele, a Lei 14.861 está de acordo com o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990). “O Código determina que os consumidores têm o direito de receber informações claras sobre a quantidade, a qualidade e a composição dos produtos consumidos”, diz. Além disso, Pacini considera a lei de rotulagem do Paraná totalmente pertinente, pois ainda não há estudos suficientes que determinem os efeitos os OGMs sobre o meio ambiente e o organismo humano. “Há estudos que atestam efeitos prejudiciais de transgênicos sobre a saúde humana e o meio ambiente, veiculados no site do governo do Paraná”(http://www.pr.gov.br/).
Desde dezembro do ano passado, o Partido da Frente Liberal (PFL) move uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3645) contra a legislação do Paraná, alegando que ela não respeita o limite de 1% de OGMs nos produtos, estabelecido pelo decreto federal, abaixo do qual não seria necessário indicar a presença de transgênicos por meio do rótulo com o triângulo amarelo contendo a letra “T”. O advogado Luchesi concorda que a lei paranaense não considera o limite pré estabelecido pelo decreto 4.680 e que provavelmente o Supremo Tribunal Federal vai considerá-la inconstitucional.
A disputa ganhou novo impulso no caso das exportações de soja transgênica pelo Porto de Paranaguá. No último dia 4, o governo do Paraná prometeu voltar ao Supremo Tribunal Federal (STF) para defender o direito de o Porto paranaense exportar apenas soja convencional, em resposta à decisão da 3ª Turma do Tribunal Regional Federal (TRF) da 4ª Região, em Porto Alegre, que revigorou liminar liberando a exportação de transgênicos pelo terminal paranaense. O governador Requião argumenta que a decisão fere a legislação federal (Lei de Biossegurança), que proíbe a mistura da soja transgênica com a convencional.
O confronto de poder entre os Estados e a União tem raízes na formação do Brasil. A diretora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB) Lúcia Avelar lembra que a disputa de poderes entre os estados federados e a união remonta à época em que os estados eram províncias autônomas. “A coroa portuguesa concedeu vários poderes às províncias, inclusive para a realização de comércio exterior, deixando ao Estado a tarefa de subsidiar as instâncias locais sem intervir diretamente em sua autonomia”, explica.
O ponto de inflexão foi a centralização promovida pelo governo de Getúlio Vargas de forma “quase autoritária”, segundo Avelar. Realizaram-se vários tipos de arranjos para tentar coordenar as relações de poder entre os Estados e a federação, a legislação foi aperfeiçoada, mas ainda não existe consenso. Hoje temos exemplos de leis que vigoram apenas em determinados locais, como o rodízio de automóveis na cidade de São Paulo. “No caso da lei de rotulagem de transgênicos no Paraná, embora seja um direito do consumidor, o conflito de forças envolve também os empresários agrícolas e nesse embate vence sempre o mais forte”, adianta a pesquisadora.